Continuação
daquele roteiro que eu gostaria de ver tornar-se um filme. Perdeu a primeira
parte? Leia
aqui.
JUÍZO
FINAL
Parte
2º - Rancho.
Não
demorou muito para as provisões acabarem. O pessoal da casa nunca reclamou de
terem de dividir sua comida com Luiz, que de sua parte procurava comer o mínimo
possível. A família pregava a caridade cristã e isso os levou a salvá-lo em
primeiro lugar.
Agora,
sem comida há doze horas e bebendo água da chuva há muitos dias, precisam
desesperadamente sair. A morte horrível do vizinho mostrou a eles que não
poderia fazer barulho, mas com certeza iriam tentar chegar ao DB da Cidade Nova
no carro da família, um antigo caravan opala diplomata comodoro wagon weekend.
O carro era bem grande e funcionava bem, podia carregar a todos dali. Restava
saber se as ruas, cheias mortos-vivos e carros empacados num engarrafamento
eterno, iriam dar passagem. Era o carro de estimação de Ismael.
Sua
esposa, Maria Raimunda, teve uma idéia. Iriam cobrir a saída com um barulho na
outra rua e daí sairiam de carro, procurando ruas pequenas do bairro. Mas fazer
barulho com o quê? O ideal seria um rojão ou coisa assim, mas quem sairia para
pegar um desses?
Todos
olharam para Luiz, que até então não tinha uma função clara na casa. Podia ter
comido pouco, mas não trouxe nenhuma comida e agora havia um serviço que
ninguém da família queria assumir.
“Ta
bom. Eu vou.”
Lhe
explicaram que o mercadinho Souza era perto e que lá sempre havia fogos de
artifício. Ele sairia de noite, pulando o muro de trás, e tentaria entrar na
casa do Seu Souza e de lá para o mercadinho, que tinha uma porta de enrolar em
aço o que inviabilizava o acesso daí. Às sete da noite lhe deram um pedaço
grosso de vergalhão para arrombar as portas que precisasse transpor, a mochila da
Barbie de Williany, uma das filhas de Ismael, e lá se foi Luiz para a sua
missão quase suicida.
A
rua estava com alguns dos monstros perambulando por lá, mas logo ele viu o
mercadinho e seguiu pra lá. Teve um instante de dúvida sobre qual era a casa
contígua ao mercadinho, mas foi apenas um instante. Ao pular o portão, seu pé
acertou uma folha de alumínio que estava mal pregada nele produzindo um grande
barulho. Ficou preocupadíssimo que esse barulho pudesse atrair os zumbis, mas
logo esse medo deu lugar à pânico quando viu um grande pastor alemão correndo
em sua direção. Odiava cachorros e não tinha condições de enfrentar um bicho desses.
Pensava nisso enquanto pulava de volta para rua, fazendo muito mais barulho no
portão e atraindo todos os mortos-vivos do local. O cachorro ladrava
furiosamente e batia contra a folha de alumínio. Isso desviou a atenção de
parte dos monstros, lerdos demais para lhe alcançarem antes que pulasse o muro
do Ismael, que o esperava do outro lado.
-
Pegou?
-
Não deu... Porque não me falou do cachorro?
-
Pensei que o cachorro havia morrido.
-
O dono dele ainda deve estar por lá, mas esse barulho todo já atraiu os mortos
para a outra rua. Podemos ir?
-
Não. À noite é bom para se esconder, mas precisamos ver bem para não
terminarmos presos na estrada. Alem disso, acho que o DB vai estar todo escuro
e não temos como fazer assim. Tem de ser amanhã de manhã.
-
Tá, mas vamos fazer mais barulho pela manhã.
Era
simplesmente impossível dormir. Todos sabiam que o dia traria uma situação que
era evitada desde o início: sair com os monstros lá fora. Dona Maria Antônia,
mãe de Maria Raimunda, passou a noite em vigília, rezando. Luiz não podia
acreditar em gente que pensava que rezar adiantaria. Quantos até ali não
rezaram fervorosamente para que tudo aquilo acabasse? Quantos não pediram para
viver e foram devorados vivos? Balançando negativamente a cabeça, tentou ao menos
descansar deitado o resto da noite. Não parava de pensar, no entanto, e isso o
esgotava. E se o lugar estiver tomado por aquelas coisas? E se o carro pregar
no meio do caminho? E se não puderem voltar pra casa? Todos os seus parentes e
amigos haviam morrido? Quem estaria vivo? Seu irmão mais velho talvez, pois
assistira a todos os filmes possíveis. E se a comida estiver toda estragada no
supermercado? E se outras pessoas tiveram a mesma idéia antes e pegaram
tudo?
E
se os monstros começarem a subir pelo muro de trás?
Levantou-se
no ato. Tinha uma fria certeza de que olharia pela janela de trás e veria
diversos monstros vagando no quintal, mas ao olhar viu apenas Ismael sentado ao
lado de sua Maria, vigiando o muro sob uma bela noite de Lua cheia.
No
outro dia, sem nem mesmo bolacha de motor para comer, se prepararam para sair.
A família toda entrou no carro, com exceção dos homens. Ismael foi com a panela
mais barulhenta e uma grande colher de metal e batucou forte e rápido com as
duas mãos por cima do muro de trás. Se elevou o som do gemido dos mortos-vivos,
que nunca parava, mas que baixa já era habitual. Correu para o carro quando
achou que estava na hora, Luiz abriu o portão e esperou o carro sair antes de
fechá-lo novamente. No carro sentou-se ao lado de Ismael. As Marias iam atrás
com as meninas Williany e Anny Vitória, que olhavam chorando para a casa que se
distanciava.
As
ruas que o motorista escolheu eram reconfortantemente desimpedidas. O carro deslizava
mansamente. Viram muitos outros monstros e percebiam que começavam a perseguir
lentamente o carro, mas sabiam que não seriam alcançados e isso também era
reconfortante. Mesmo assim não faziam som, ninguém conversava, apenas olhavam a
coleção de aberrações desfilando principalmente nas calçadas. Era como se os
mortos se lembrassem que deveriam andar por calçadas nas ruas outrora
movimentadas. Em Manaus, o costume de andar nas ruas só valia para as ruas
menores, nos bairros. Lá os zumbis andavam por todos os lugares.
O
cheiro nas ruas era revoltante e resolveram manter os vidros levantados, mesmo
com o calor. Por sorte, era época das chuvas e não estava realmente quente. Se
fosse em agosto a coisa seria diferente.
Chegaram
ao DB sem grandes problemas, mas o estacionamento estava cheio de mortos-vivos.
Havia um plano de contingência para isso. Luiz, mais jovem, deveria guiar a
família para a segurança pela área de carga e descarga, erguendo as pessoas se
fosse necessário passar por algum basculante e Ismael iria atrair a atenção dos
monstros para outro lado. O problema é que havia tantos monstros que seria
impossível sequer chegarem perto da área de carga e descarga à pé. Na verdade,
os mortos já haviam percebido o carro e convergiam inexoravelmente em direção
ao opala, por todos os lados.
Subitamente
Ismael pisou fundo no acelerador.
-
O que está fazendo? Perguntou Luiz.
-
Precisamos entrar. Não temos pra onde ir e precisamos comer. Não dá pra voltar
assim e precisamos de espaço.
Fazendo
o máximo de barulho o carro rodava loucamente no posto de gasolina contíguo ao
Hiper DB da Cidade Nova. Quando havia monstros demais, quando ficou claro que
eles iriam formar uma avalanche podre sobre o carro, Ismael deu ré retornando
para rua e daí voou para a carga e descarga. Graças à Deus opalas são muito possantes
e logo estavam no lugar que queriam, mas ainda não estavam à salvo. Todos
saíram do transporte e uma a um subiram no capô do caravan, com Luiz e Ismael
erguendo as meninas para entrarem por uma janela alta. Faziam isso ao mesmo
tempo em que chutavam as cabeças dos desgraçados que se aproximavam dele. Em um
dado momento, uma novidade terrível se apresentou quando um morto-vivo apareceu
correndo e gritando de forma completamente diferente dos demais. Esse se
abraçou nas pernas de Ismael, derrubando-o, ao mesmo tempo em que afundava os
dentes na coxa esquerda dele. Ismael caiu gritando, mais de medo do que de dor
e, no meio de sua agonia, olhou para Luiz e disse “cuide delas”.
Luiz
entrou depois de com muito esforço empurrar Dona Maria Antônia. Lá dentro várias
pessoas estavam lhe esperando. Alguns dos homens fortes lhe levantaram do chão
e disseram apenas “vamos”.
Pra
onde?
CONTINUA
SEMANA QUE VEM.
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