segunda-feira, 6 de maio de 2013

Continuação daquele roteiro que eu gostaria de ver tornar-se um filme. Perdeu a primeira parte? Leia aqui.



JUÍZO FINAL

Parte 2º - Rancho.

Não demorou muito para as provisões acabarem. O pessoal da casa nunca reclamou de terem de dividir sua comida com Luiz, que de sua parte procurava comer o mínimo possível. A família pregava a caridade cristã e isso os levou a salvá-lo em primeiro lugar.

Agora, sem comida há doze horas e bebendo água da chuva há muitos dias, precisam desesperadamente sair. A morte horrível do vizinho mostrou a eles que não poderia fazer barulho, mas com certeza iriam tentar chegar ao DB da Cidade Nova no carro da família, um antigo caravan opala diplomata comodoro wagon weekend. O carro era bem grande e funcionava bem, podia carregar a todos dali. Restava saber se as ruas, cheias mortos-vivos e carros empacados num engarrafamento eterno, iriam dar passagem. Era o carro de estimação de Ismael.

Sua esposa, Maria Raimunda, teve uma idéia. Iriam cobrir a saída com um barulho na outra rua e daí sairiam de carro, procurando ruas pequenas do bairro. Mas fazer barulho com o quê? O ideal seria um rojão ou coisa assim, mas quem sairia para pegar um desses?

Todos olharam para Luiz, que até então não tinha uma função clara na casa. Podia ter comido pouco, mas não trouxe nenhuma comida e agora havia um serviço que ninguém da família queria assumir.

“Ta bom. Eu vou.”

Lhe explicaram que o mercadinho Souza era perto e que lá sempre havia fogos de artifício. Ele sairia de noite, pulando o muro de trás, e tentaria entrar na casa do Seu Souza e de lá para o mercadinho, que tinha uma porta de enrolar em aço o que inviabilizava o acesso daí. Às sete da noite lhe deram um pedaço grosso de vergalhão para arrombar as portas que precisasse transpor, a mochila da Barbie de Williany, uma das filhas de Ismael, e lá se foi Luiz para a sua missão quase suicida.

A rua estava com alguns dos monstros perambulando por lá, mas logo ele viu o mercadinho e seguiu pra lá. Teve um instante de dúvida sobre qual era a casa contígua ao mercadinho, mas foi apenas um instante. Ao pular o portão, seu pé acertou uma folha de alumínio que estava mal pregada nele produzindo um grande barulho. Ficou preocupadíssimo que esse barulho pudesse atrair os zumbis, mas logo esse medo deu lugar à pânico quando viu um grande pastor alemão correndo em sua direção. Odiava cachorros e não tinha condições de enfrentar um bicho desses. Pensava nisso enquanto pulava de volta para rua, fazendo muito mais barulho no portão e atraindo todos os mortos-vivos do local. O cachorro ladrava furiosamente e batia contra a folha de alumínio. Isso desviou a atenção de parte dos monstros, lerdos demais para lhe alcançarem antes que pulasse o muro do Ismael, que o esperava do outro lado.

- Pegou?
- Não deu... Porque não me falou do cachorro?
- Pensei que o cachorro havia morrido.
- O dono dele ainda deve estar por lá, mas esse barulho todo já atraiu os mortos para a outra rua. Podemos ir?
- Não. À noite é bom para se esconder, mas precisamos ver bem para não terminarmos presos na estrada. Alem disso, acho que o DB vai estar todo escuro e não temos como fazer assim. Tem de ser amanhã de manhã.
- Tá, mas vamos fazer mais barulho pela manhã.

Era simplesmente impossível dormir. Todos sabiam que o dia traria uma situação que era evitada desde o início: sair com os monstros lá fora. Dona Maria Antônia, mãe de Maria Raimunda, passou a noite em vigília, rezando. Luiz não podia acreditar em gente que pensava que rezar adiantaria. Quantos até ali não rezaram fervorosamente para que tudo aquilo acabasse? Quantos não pediram para viver e foram devorados vivos? Balançando negativamente a cabeça, tentou ao menos descansar deitado o resto da noite. Não parava de pensar, no entanto, e isso o esgotava. E se o lugar estiver tomado por aquelas coisas? E se o carro pregar no meio do caminho? E se não puderem voltar pra casa? Todos os seus parentes e amigos haviam morrido? Quem estaria vivo? Seu irmão mais velho talvez, pois assistira a todos os filmes possíveis. E se a comida estiver toda estragada no supermercado? E se outras pessoas tiveram a mesma idéia antes e pegaram tudo?   

E se os monstros começarem a subir pelo muro de trás?

Levantou-se no ato. Tinha uma fria certeza de que olharia pela janela de trás e veria diversos monstros vagando no quintal, mas ao olhar viu apenas Ismael sentado ao lado de sua Maria, vigiando o muro sob uma bela noite de Lua cheia.

No outro dia, sem nem mesmo bolacha de motor para comer, se prepararam para sair. A família toda entrou no carro, com exceção dos homens. Ismael foi com a panela mais barulhenta e uma grande colher de metal e batucou forte e rápido com as duas mãos por cima do muro de trás. Se elevou o som do gemido dos mortos-vivos, que nunca parava, mas que baixa já era habitual. Correu para o carro quando achou que estava na hora, Luiz abriu o portão e esperou o carro sair antes de fechá-lo novamente. No carro sentou-se ao lado de Ismael. As Marias iam atrás com as meninas Williany e Anny Vitória, que olhavam chorando para a casa que se distanciava.

As ruas que o motorista escolheu eram reconfortantemente desimpedidas. O carro deslizava mansamente. Viram muitos outros monstros e percebiam que começavam a perseguir lentamente o carro, mas sabiam que não seriam alcançados e isso também era reconfortante. Mesmo assim não faziam som, ninguém conversava, apenas olhavam a coleção de aberrações desfilando principalmente nas calçadas. Era como se os mortos se lembrassem que deveriam andar por calçadas nas ruas outrora movimentadas. Em Manaus, o costume de andar nas ruas só valia para as ruas menores, nos bairros. Lá os zumbis andavam por todos os lugares.

O cheiro nas ruas era revoltante e resolveram manter os vidros levantados, mesmo com o calor. Por sorte, era época das chuvas e não estava realmente quente. Se fosse em agosto a coisa seria diferente.

Chegaram ao DB sem grandes problemas, mas o estacionamento estava cheio de mortos-vivos. Havia um plano de contingência para isso. Luiz, mais jovem, deveria guiar a família para a segurança pela área de carga e descarga, erguendo as pessoas se fosse necessário passar por algum basculante e Ismael iria atrair a atenção dos monstros para outro lado. O problema é que havia tantos monstros que seria impossível sequer chegarem perto da área de carga e descarga à pé. Na verdade, os mortos já haviam percebido o carro e convergiam inexoravelmente em direção ao opala, por todos os lados.

Subitamente Ismael pisou fundo no acelerador.

- O que está fazendo? Perguntou Luiz.
- Precisamos entrar. Não temos pra onde ir e precisamos comer. Não dá pra voltar assim e precisamos de espaço.

Fazendo o máximo de barulho o carro rodava loucamente no posto de gasolina contíguo ao Hiper DB da Cidade Nova. Quando havia monstros demais, quando ficou claro que eles iriam formar uma avalanche podre sobre o carro, Ismael deu ré retornando para rua e daí voou para a carga e descarga. Graças à Deus opalas são muito possantes e logo estavam no lugar que queriam, mas ainda não estavam à salvo. Todos saíram do transporte e uma a um subiram no capô do caravan, com Luiz e Ismael erguendo as meninas para entrarem por uma janela alta. Faziam isso ao mesmo tempo em que chutavam as cabeças dos desgraçados que se aproximavam dele. Em um dado momento, uma novidade terrível se apresentou quando um morto-vivo apareceu correndo e gritando de forma completamente diferente dos demais. Esse se abraçou nas pernas de Ismael, derrubando-o, ao mesmo tempo em que afundava os dentes na coxa esquerda dele. Ismael caiu gritando, mais de medo do que de dor e, no meio de sua agonia, olhou para Luiz e disse “cuide delas”.

Luiz entrou depois de com muito esforço empurrar Dona Maria Antônia. Lá dentro várias pessoas estavam lhe esperando. Alguns dos homens fortes lhe levantaram do chão e disseram apenas “vamos”.

Pra onde?

CONTINUA SEMANA QUE VEM.

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