sexta-feira, 18 de abril de 2014




Coisa Viscosa – Parte 3 – Final

Ainda não estava doendo, mas Adroaldo estava enlouquecendo. Sabia que nem ele nem ninguém poderia retirar aquela coisa viscosa de seu crânio. Porque isso agora? Porque ele, que odiava dor? Iria mesmo acabar assim?

Começou a sentir uma espécie de enxaqueca estranha subitamente. O estranhamento vinha do fato dessa enxaqueca ter um formato quase circular, no perímetro da criatura que se alojava em sua cabeça. O desespero era crescente, pois agora quase todos estavam gritando em agonia. Um homem que não estava ainda em sofrimento físico, em pânico, correu para o lado de Adroaldo como se este pudesse fazer alguma coisa. Mais um se juntou a ele e logo o recinto estava dividido entre os que estavam sofrendo de uma dor excruciante e os que esperavam impotentes sua vez. Os parentes gritavam junto, pedindo para alguém fazer alguma coisa. O homem que correu seguindo o outro para o lado de Adroaldo começou a emitir um som, entre o desconcertado e o apavorado, parecido com um “aaah... aaah...” que foi crescendo até se tornar um urro de dor.

Adroaldo olhava fixamente para o primeiro homem, pois queria ver o que aconteceria a este. Sabia que em seguida todos teriam o mesmo fim. Não pedia a ajuda de ninguém. Se foram incapazes de remover a coisa, o que esperar agora de seus cuidadores? Em seu interior três sentimentos conflitavam: o medo da dor por vir, o desejo de morte se a dor for demais e o fascínio pelo destino do primeiro homem. Seria como olhar o futuro.

Militares entram correndo no recinto, fuzis nas mãos, seguidos de médicos que são imediatamente cercados pelos parentes que lhes informam aos gritos o que está acontecendo. Os médicos pedem que fiquem calmos e que falem um de cada vez. Nesse momento, o paciente que iniciou a gritaria generalizada sofreu nova e abjeta evolução do problema: o monstro abriu seu crânio como se este fosse dotado de portas de folhas duplas. O homem parou de gritar, seus olhos reviraram nas órbitas ao mesmo tempo que a criatura se liquefazia, passava pra dentro da vítima e fechava as portas que se tornaram os ossos parietais atrás de si.

O homem desabou. Sua filha que o acompanhava passou a gritar “papai” desesperadamente. Todos estavam berrando na sala. O medo era talvez pior que a dor em si. Outro homem começou a gritar “não”, mas sequer chegou à letra “o” enquanto seu próprio parasita passava para dentro de sua cabeça. Só não caiu o chão porque o amigo que o acompanhava, um homem forte, o sustentou. Os médicos cercavam o primeiro a abrigar o visitante dentro de si – era assim que os doutores chamavam os alienígenas – mas não podiam fazer mais do que checar seus sinais vitais naquele momento. Adroaldo queria ouvir  o que diziam sobre a situação, mas o barulho era infernal. Os soldados cercavam os médicos para permitir que estes trabalhassem, impedindo o acesso dos acompanhantes. O homem forte trouxe seu amigo, que foi aceito em meio ao círculo fortemente armado, mas teve de deixá-lo e sair dali. Alguém gritou na multidão “deixem esses aí que já morreram e façam algo pelos que ainda estão vivos” e foi imediatamente espancado pelo homem forte. Os soldados, ocupados em isolar os médicos, não abandonavam a formação. Agora um terceiro homem teve a caveira aberta. Sua boca não escancarou como a dos outros, mas a bochecha direita se repuxou terrivelmente e o olho esquerdo – só ele – olhou para a esquerda e para cima. Era o rosto de alguém que sofrera um derrame.

A dor de Adroaldo aumentava. Sentia uma pressão forte como de sucção. Levou as duas mãos à carapaça da criatura, que parecia impenetrável, e fez força pra baixo. Não diminuiu um pascal. Duas outras pessoas sofreram o terrível colapso após terem suas caveiras escancaradas, invadidas e fechadas como ostras sinistras. Os médicos constataram estarrecidos que as funções vitais continuavam. A massa da entidade que invadiu a cabeça de seus pacientes era grande demais, de modo que a pressão intracraniana deveria lesionar o cérebro levando ao óbito. Contra toda a lógica e conhecimentos médicos, a respiração estava normal e o pulso regular em cada um dos observados. Os crânios estavam selados por dentro, numa nova ação defensiva da abominação informe.

Subitamente a dor subiu para níveis alarmantes e, com um frio na espinha, Adroaldo sentiu o crânio sendo aberto. Doía tanto que ele ficou cego. Levou novamente as mãos à cabeça e sentiu quando os ossos se mexiam para deixar o parasita entrar. Quando o alienígena passou pra dentro, podia sentir também a gosma repugnante se acomodando e mexendo no cérebro, ouvidos, fossas nasais, olhos... seu toque era horrível. O horror era tão grande que a dor ficou em segundo plano.

Adroaldo acordou. Ele estava em uma cama de hospital, deitado e levemente inclinado para cima. Não havia soro ou qualquer coisa no seu braço. Notou que monitoravam sua frequência cardíaca através de uma máquina ligada ao seu indicador esquerdo. Vestia uma bata ou coisa assim. Tudo era imaculadamente branco e não haviam coisas como uma TV ou uma mesa com flores, por isso imaginou que estava em alguma base militar, isolado até dos outros infelizes infestados por um mal que veio do espaço. Sentia-se bem e descansado. Levou a mão à cabeça e sentiu bandagens. Perscrutou em vão o quarto mais uma vez em busca de um espelho que sabia que não encontraria. Não estava amarrado, mas não desejava sair da cama e não encontrava um botão para chamar a enfermeira. Tirou o medidor cardíaco do dedo, certo de que algum alarme soaria. Não demorou nem dez segundos para entrarem soldados, médicos e enfermeiros. A forma como entraram lhe dizia que esperavam algum tipo de conflito, mas aí notaram a placidez de Adroaldo e diminuíram o ritmo das passadas.

- Como está se sentindo, Adroaldo?

- Estou bem. Quando posso sair daqui?

- Precisamos conversar sobre isso antes.

- Sobre eu sair daqui? Por quê? Sou prisioneiro?

- Não diria isso. Estamos cuidando de você.

- Vi como fomos cuidados: não puderam fazer nada para retirar os monstros e não conseguiram impedi-los de entrar nas nossas cabeças!

- Então você lembra. Isso não te assusta?

- Estou vivo e bem, não estou? Devem ter retirado o bicho de cima dos meus miolos não é? Daí as bandagens, certo? Espero que não tenham feito transfusão de sangue...

- Senhor, um alienígena invadiu seu corpo e continuas calmo. Não é estranho? À propósito, descobrimos que o senhor não é testemunha de Jeová.

- Gente é que me deixa nervoso. O que quer que tenha acontecido, já passou. Quero seguir com minha vida.

- Precisamos lhe dizer uma coisa muito séria.

- Diga logo de uma vez e me deixe ir embora.

- Certo. Tenho de lhe mostrar algo.

O médico lhe mostrou uma série de exames que fizeram enquanto Adroaldo estava desmaiado. Era uma grande quantidade de exames, o que indicava que passara muito tempo desmaiado. Prestou atenção nas datas e percebeu que estava ali há pelo menos um mês. O médico percebeu que seu paciente notara as datas e lhe informou que Adroaldo estivera em coma por um período de quarenta e dois dias. No fim do calhamaço estavam os exames realizados na cabeça, além de diversas fotos. Numa delas, seus olhos não eram mais castanhos, mas verdes. Um dos exames mostrava seu crânio oco e ele não entendeu muito bem o que estava sendo mostrado. O médico retomou os exames e iniciou a explicação.

- Isso que você vê não é um crânio vazio. É uma tomografia que não deu certo. O que você tem aí dentro da cabeça repele totalmente ou deixa que flua para fora a radiação e por isso não aparece nada.

- “O que eu tenho na cabeça?”

Os médicos se entreolharam. O que estava dando as explicações umedeceu os lábios com a língua antes de continuar.

- Não foi possível fazer nenhum exame externo que mostrasse o estado dos cérebros dos pacientes, então fizemos uma trepanação, abrimos um pequeno furo na cabeça deles, para ver o que havia lá dentro com uma pequena câmera. Tentamos fazer isso antes através das fossas nasais, mas descobrimos que o crânio estava selado em todos vocês.

- O que foi que vocês viram lá?

- Aparentemente, o visitante devorou toda a massa encefálica e assumiu suas funções. É ele que mantém seus sistemas vitais funcionando normalmente. Como também assumiu cada aspecto do seu cérebro, cada elemento químico, cada neurônio, ele também copiou suas memórias e jeito de ser. O cérebro controla o comportamento, os músculos, a secreção de coisas como os hormônios e por aí vai. Tudo isso agora é controlado pelo visitante.

- O que está tentando me dizer exatamente?

Mais uma vez os médicos se entreolham. Os soldados ao redor visivelmente tensos. Um deles até mesmo segura a arma com mais força antecipando uma reação que já deveria ter visto antes em uma sala próxima. Estranhamente, porém, Adroaldo não ficava ansioso percebendo tudo isso. Os dois médicos voltaram a lhe olhar e ele se preparou para a resposta.

- Sua personalidade é apenas uma cópia. Você é uma coisa viscosa que pensa que é um homem chamado Adroaldo.

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