Coisa Viscosa – Parte 3 – Final
Ainda não estava doendo, mas Adroaldo estava enlouquecendo. Sabia
que nem ele nem ninguém poderia retirar aquela coisa viscosa de seu crânio.
Porque isso agora? Porque ele, que odiava dor? Iria mesmo acabar assim?
Começou a sentir uma espécie de enxaqueca estranha subitamente.
O estranhamento vinha do fato dessa enxaqueca ter um formato quase circular, no
perímetro da criatura que se alojava em sua cabeça. O desespero era crescente,
pois agora quase todos estavam gritando em agonia. Um homem que não estava
ainda em sofrimento físico, em pânico, correu para o lado de Adroaldo como se
este pudesse fazer alguma coisa. Mais um se juntou a ele e logo o recinto
estava dividido entre os que estavam sofrendo de uma dor excruciante e os que
esperavam impotentes sua vez. Os parentes gritavam junto, pedindo para alguém
fazer alguma coisa. O homem que correu seguindo o outro para o lado de Adroaldo
começou a emitir um som, entre o desconcertado e o apavorado, parecido com um “aaah...
aaah...” que foi crescendo até se tornar um urro de dor.
Adroaldo olhava fixamente para o primeiro homem, pois queria
ver o que aconteceria a este. Sabia que em seguida todos teriam o mesmo fim. Não
pedia a ajuda de ninguém. Se foram incapazes de remover a coisa, o que esperar
agora de seus cuidadores? Em seu interior três sentimentos conflitavam: o medo
da dor por vir, o desejo de morte se a dor for demais e o fascínio pelo destino
do primeiro homem. Seria como olhar o futuro.
Militares entram correndo no recinto, fuzis nas mãos,
seguidos de médicos que são imediatamente cercados pelos parentes que lhes informam aos
gritos o que está acontecendo. Os médicos pedem que fiquem calmos e que falem
um de cada vez. Nesse momento, o paciente que iniciou a gritaria generalizada sofreu nova e abjeta evolução do problema: o monstro abriu seu crânio como
se este fosse dotado de portas de folhas duplas. O homem parou de gritar, seus
olhos reviraram nas órbitas ao mesmo tempo que a criatura se liquefazia,
passava pra dentro da vítima e fechava as portas que se tornaram os ossos
parietais atrás de si.
O homem desabou. Sua filha que o acompanhava passou a gritar “papai”
desesperadamente. Todos estavam berrando na sala. O medo era talvez pior que a
dor em si. Outro homem começou a gritar “não”, mas sequer chegou à letra “o”
enquanto seu próprio parasita passava para dentro de sua cabeça. Só não caiu o
chão porque o amigo que o acompanhava, um homem forte, o sustentou. Os médicos
cercavam o primeiro a abrigar o visitante dentro de si – era assim que os
doutores chamavam os alienígenas – mas não podiam fazer mais do que checar seus
sinais vitais naquele momento. Adroaldo queria ouvir o que diziam sobre a situação, mas o barulho
era infernal. Os soldados cercavam os médicos para permitir que estes
trabalhassem, impedindo o acesso dos acompanhantes. O homem forte trouxe seu
amigo, que foi aceito em meio ao círculo fortemente armado, mas teve de
deixá-lo e sair dali. Alguém gritou na multidão “deixem esses aí que já
morreram e façam algo pelos que ainda estão vivos” e foi imediatamente
espancado pelo homem forte. Os soldados, ocupados em isolar os médicos, não
abandonavam a formação. Agora um terceiro homem teve a caveira aberta. Sua boca
não escancarou como a dos outros, mas a bochecha direita se repuxou terrivelmente
e o olho esquerdo – só ele – olhou para a esquerda e para cima. Era o rosto de
alguém que sofrera um derrame.
A dor de Adroaldo aumentava. Sentia uma pressão forte como de
sucção. Levou as duas mãos à carapaça da criatura, que parecia impenetrável, e
fez força pra baixo. Não diminuiu um pascal. Duas outras pessoas sofreram o
terrível colapso após terem suas caveiras escancaradas, invadidas e fechadas
como ostras sinistras. Os médicos constataram estarrecidos que as funções vitais
continuavam. A massa da entidade que invadiu a cabeça de seus pacientes era
grande demais, de modo que a pressão intracraniana deveria lesionar o cérebro levando
ao óbito. Contra toda a lógica e conhecimentos médicos, a respiração estava
normal e o pulso regular em cada um dos observados. Os crânios estavam selados
por dentro, numa nova ação defensiva da abominação informe.
Subitamente a dor subiu para níveis alarmantes e, com um frio
na espinha, Adroaldo sentiu o crânio sendo aberto. Doía tanto que ele ficou
cego. Levou novamente as mãos à cabeça e sentiu quando os ossos se mexiam para
deixar o parasita entrar. Quando o alienígena passou pra dentro, podia sentir
também a gosma repugnante se acomodando e mexendo no cérebro, ouvidos, fossas
nasais, olhos... seu toque era horrível. O horror era tão grande que a dor
ficou em segundo plano.
Adroaldo acordou. Ele estava em uma cama de hospital, deitado
e levemente inclinado para cima. Não havia soro ou qualquer coisa no seu braço.
Notou que monitoravam sua frequência cardíaca através de uma máquina ligada ao
seu indicador esquerdo. Vestia uma bata ou coisa assim. Tudo era imaculadamente
branco e não haviam coisas como uma TV ou uma mesa com flores, por isso
imaginou que estava em alguma base militar, isolado até dos outros infelizes infestados
por um mal que veio do espaço. Sentia-se bem e descansado. Levou a mão à cabeça
e sentiu bandagens. Perscrutou em vão o quarto mais uma vez em busca de um espelho
que sabia que não encontraria. Não estava amarrado, mas não desejava sair da
cama e não encontrava um botão para chamar a enfermeira. Tirou o medidor
cardíaco do dedo, certo de que algum alarme soaria. Não demorou nem dez
segundos para entrarem soldados, médicos e enfermeiros. A forma como entraram
lhe dizia que esperavam algum tipo de conflito, mas aí notaram a placidez de
Adroaldo e diminuíram o ritmo das passadas.
- Como está se sentindo, Adroaldo?
- Estou bem. Quando posso sair daqui?
- Precisamos conversar sobre isso antes.
- Sobre eu sair daqui? Por quê? Sou prisioneiro?
- Não diria isso. Estamos cuidando de você.
- Vi como fomos cuidados: não puderam fazer nada para retirar
os monstros e não conseguiram impedi-los de entrar nas nossas cabeças!
- Então você lembra. Isso não te assusta?
- Estou vivo e bem, não estou? Devem ter retirado o bicho de
cima dos meus miolos não é? Daí as bandagens, certo? Espero que não tenham
feito transfusão de sangue...
- Senhor, um alienígena invadiu seu corpo e continuas calmo.
Não é estranho? À propósito, descobrimos que o senhor não é testemunha de Jeová.
- Gente é que me deixa nervoso. O que quer que tenha
acontecido, já passou. Quero seguir com minha vida.
- Precisamos lhe dizer uma coisa muito séria.
- Diga logo de uma vez e me deixe ir embora.
- Certo. Tenho de lhe mostrar algo.
O médico lhe mostrou uma série de exames que fizeram enquanto
Adroaldo estava desmaiado. Era uma grande quantidade de exames, o que indicava
que passara muito tempo desmaiado. Prestou atenção nas datas e percebeu que
estava ali há pelo menos um mês. O médico percebeu que seu paciente notara as
datas e lhe informou que Adroaldo estivera em coma por um período de quarenta e
dois dias. No fim do calhamaço estavam os exames realizados na cabeça, além de diversas
fotos. Numa delas, seus olhos não eram mais castanhos, mas verdes. Um dos exames
mostrava seu crânio oco e ele não entendeu muito bem o que estava sendo
mostrado. O médico retomou os exames e iniciou a explicação.
- Isso que você vê não é um crânio vazio. É uma tomografia
que não deu certo. O que você tem aí dentro da cabeça repele totalmente ou
deixa que flua para fora a radiação e por isso não aparece nada.
- “O que eu tenho na cabeça?”
Os médicos se entreolharam. O que estava dando as explicações
umedeceu os lábios com a língua antes de continuar.
- Não foi possível fazer nenhum exame externo que mostrasse o
estado dos cérebros dos pacientes, então fizemos uma trepanação, abrimos um
pequeno furo na cabeça deles, para ver o que havia lá dentro com uma pequena
câmera. Tentamos fazer isso antes através das fossas nasais, mas descobrimos
que o crânio estava selado em todos vocês.
- O que foi que vocês viram lá?
- Aparentemente, o visitante devorou toda a massa encefálica
e assumiu suas funções. É ele que mantém seus sistemas vitais funcionando
normalmente. Como também assumiu cada aspecto do seu cérebro, cada elemento químico,
cada neurônio, ele também copiou suas memórias e jeito de ser. O cérebro
controla o comportamento, os músculos, a secreção de coisas como os hormônios e
por aí vai. Tudo isso agora é controlado pelo visitante.
- O que está tentando me dizer exatamente?
Mais uma vez os médicos se entreolham. Os soldados ao redor
visivelmente tensos. Um deles até mesmo segura a arma com mais força
antecipando uma reação que já deveria ter visto antes em uma sala próxima. Estranhamente,
porém, Adroaldo não ficava ansioso percebendo tudo isso. Os dois médicos
voltaram a lhe olhar e ele se preparou para a resposta.
- Sua personalidade é apenas uma cópia. Você é uma coisa viscosa que pensa que é um homem chamado Adroaldo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário