Juízo
Final – Parte 9 – Abrigo é Ilusão
Os dias se passaram sem mais. Chaiane continuou
procurando Luiz, que lhe correspondeu todas as vezes. Era bom estar gostando de
alguém de novo, ainda que fosse dessa forma tão inesperada. Mais do que isso,
voltar a gozar lhe fez voltar a se sentir vivo e, num mundo infestado pelos
mortos-vivos, saber o que é vida de verdade é fundamental.
Ele também começou a reparar nos homens que haviam por
lá. Havia um em particular que lhe chamava atenção, mas como este não parecia
homossexual nem tentaria uma aproximação. Mais de uma vez, porém, comeu sua
namorada pensando nele.
Chaiane gostava muito de conversar e isso é o que
fazia dar certo. Verdade: o sexo era bom e era uma mulher linda, mas era mulher
e Luiz sabia que isso não duraria pra sempre. Em suas conversas falavam de como
o mundo era e de como poderia ser se algum dia os mortos atingissem uma
proporção tal que a humanidade pudesse lidar com eles. Luiz acreditava que nada
jamais seria como antes e que a civilização não poderia se reerguer depois de
uma desgraça como essa, que era o fim do curto reinado do ser humano na Terra,
mais isso só até encontrar com Chaiane. Ela lhe lembrou que já ocorreram pragas
que assolaram a humanidade no passado e que parecia que tudo estava perdido,
como a Peste Negra na Europa, por exemplo. Ao término dessa provação as pessoas
que sobrevivem a esse tipo de teste são pessoas melhores, mais fortes.
Mais fortes não quer dizer boas, pensou consigo mesmo.
Não estragaria a esperança de ninguém, mas se a humanidade podia resistir a
esse tipo de holocausto seria através de homens mais terríveis que os zumbis.
A comida ia ficando escassa, mas ninguém parecia
preocupado em conseguir mais. Luiz é que não iria chamar atenção sobre esse
fato. Ainda estava recente em sua memória a corrida que fizeram, ele e Dona
Antônia, para o Carrefour, sem ao menos saber se conseguiriam entrar, sem a
menor esperança de voltar atrás para os que lhes enviaram para pegar a comida
em primeiro lugar.
Com os outros conversava apenas amenidades. Dona
Antônia estava até mesmo esquecida, pois ela mesma preferia estar com as outras
duas senhoras na cozinha, trabalhando. Era dessas velhas senhoras para quem a
lida doméstica era quase um estilo de vida e as maravilhas da Internet, que
tanto faziam falta para Luiz, jamais seriam sequer consideradas. Ria muito em
companhia de suas colegas de trabalho. As tarefas na cozinha, a limpeza, sequer
foram designadas para Antônia, que simplesmente aderiu ao trabalho.
Com Luiz era diferente. Ninguém, exceto Chaiane,
gostava de “ficar olhando” os monstros do lado de fora. Se pudessem
simplesmente desodorizar o ambiente e fazer de conta que eles não estava lá...
Assim seu trabalho era montar guarda eterna, ao lado da mulher que sempre fazia
observações – por vezes jocosas – acerca dos mortos.
Ele nunca parava de se preocupar. Era um traço de sua
personalidade. Seria bom se a preocupação o levasse a algum lugar, o que não
acontecia de fato. Temia, por exemplo, o fim dos mantimentos, mas não tinha
nenhum plano se esse fosse o caso. Sabia que teriam de sair do supermercado,
mas nem morto sairia dali. Se por acaso pudessem obrigá-lo a sair do recinto,
também não sabia para onde correr. Nem ao menos possuía um carro para se
deslocar mais rápido ou ter a esperança de levar alguém como Dona Antônia ou
Chaiane consigo.
Um dia estava sozinho de guarda enquanto Chaiane
estava descansando e viu o inimaginável: sobreviventes armados entrando no
estacionamento em uma Ranger cabine dupla, a toda velocidade, atirando. Não
havia ninguém preparado para isso, ninguém discutira o que fazer num caso
desses, não havia nada o que fazer. Não precisava sequer avisar o que estava
acontecendo, pois todos ouviam o som do motor e os tiros. Os ocupantes do
Carrefour correram até o portão de enrolar que fechava o estabelecimento para
olhar o que acontecia do lado de fora. Os homens dirigiam o carro lotado de
sobreviventes, com atiradores na caçamba. Atropelavas os zumbis
propositadamente, com as rodas altas e do tipo off-road aliadas à tração 4x4
garantindo que a pick-up continuasse. Foram direto ao extremo do
estacionamento, manobrando até calmamente o carro para que ficasse bem de
frente para o supermercado. O caminho para a porta da frente estava quase livre
de mortos-vivos. Repentinamente, Luiz percebeu o que iria acontecer a seguir e
gritou SAIAM DA FRENTE DA PORTA ao mesmo tempo em que saía correndo dali.
No mesmo momento começou uma pequena discussão com
perguntas como “por quê?” e afirmações tais como “não pode ser!”. Isso acabou
abruptamente quando os invasores aceleraram violentamente em direção à entrada.
Gritaria e pânico generalizado. Alguns ainda se
dirigiam à entrada querendo entender. Era ainda muito cedo e vários acordaram
com os tiros. Chaiane estava entre eles. Luiz viu Dona Antônia com duas sacolas
cheias do que pareciam ser vegetais olhando fixamente para ele, sua postura
estática chamando sua atenção em meio à correria, saindo logo depois em direção
ao estoque já esgotado. Ele a seguiu. Não havia como chamar Chaiane. Não havia
como enfrentar os invasores.
Percebeu então que Dona Antônia havia se preparado
para essa contingência. O plano parecia ser sair pó onde entraram.
Ao alcançar a velha, que estava bem mais perto do
antigo estoque, avistou a mesma já posicionando uma pequena escada que estava
por ali para isso mesmo. Dona Antônia lhe entregou uma corda ao mesmo tempo em
que dizia “puxa”. A outra ponta da corda estava amarrada nos entulhos que
bloqueavam sua saída. Nesse momento ouviram o estrondo terrível da pick-up
violando o santuário deles. Deram um puxão mais forte e derrubaram o bloqueio, seu
barulho encoberto pela gritaria e tiros próximos. Ainda olhou pela porta na
esperança vã de ver Chaiane aparecendo, mas não teve essa graça. Também não
poderia chamar por ela sob pena de atrair pessoas indesejadas. Tinha sorte de
Dona Antônia ter lhe chamado.
– Vamos pro São Jorge – disse Antônia.
CONTINUA
SEMANA QUE VEM.
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