segunda-feira, 1 de abril de 2013

Dia 1009



Fui mordida por um dos espécimes há algumas horas. Dói muito e o medo me toma de assalto. São três e quarenta e cinco da manhã e quero documentar tudo. Aqui é a Doutora Prado.

Recapitulando: criamos uma vacina genética que deveria melhorar o desempenho humano, retardando inclusive o envelhecimento. Nossa pesquisa se iniciou há pouco mais de dois anos e meio, quando se produziu uma célula com uma cobertura especial que a fazia mais durável, imune a contaminações e que continuava trabalhando depois de morta. Eu e meu time trabalhávamos numa terapia genética que modificaria as células do corpo humano de maneira a produzir sua própria cobertura especial. Conseguimos melhor êxito do que o esperado, quando o resultado foi uma vacina que transformava o corpo como queríamos em uma única aplicação.

A vacina se utiliza de um vírus que modifica a adeno-hipófise e o hipotálamo. Sob o estímulo do GHRF liberado pelo hipotálamo, a adeno-hipófise melhorada produzia o hormônio de crescimento também melhorado. Esse hormônio se liga e modifica todas as células do corpo através de receptores de membrana específicos, atua diretamente nas enzimas, organelas citoplasmáticas ou diretamente nos genes.

Claro que testamos nos animais primeiro. Lá os resultados foram fantásticos, com testes de laboratório provando que ratos tiveram sua expectativa de vida aumentada em até 354% e macacos se livraram de males como câncer, diabetes, hepatite e AIDS. De fato, até algumas horas atrás, ainda haviam camundongos mantidos vivos, como controle. Sacrificamos alguns espécies para mais testes e autópsias. Exceto pelo aspecto “plastificado” do tecido muscular esquelético e das vísceras, não havia sinal de nada errado.

Mais importante: os espécimes permaneciam mortos uma vez declarado o óbito.

Ainda não estávamos preparados para testar em seres humanos, mas ocorreu um acidente e todos fomos contaminados. Digo acidente porque essa é a versão oficial, mas devo registrar que indícios apontam para uma ação bem executada. Se esse “acidente” foi causado por uma empresa rival, por ativistas dos direitos dos animais ou pela nossa própria empresa na ânsia por testes humanos permanece um mistério. Não há sinal de nosso carrasco.

Todos fomos infectados pela comida e água, contaminadas por nosso vírus – do gênero Enteroviridae modificado para nossos propósitos – produto batizado pela empresa de Evolucionary Step.

Estou aplicando fortes doses de antibiótico, mas é uma tentativa desesperada. Ajudei a fazer o vírus e sei que não ficarei “boa”.

...

São quatro e meia da manhã. É impressionante a velocidade com que as modificações ocorrem. A ferida está cicatrizando rapidamente e não sangra mesmo se eu exercer pressão no local. De início senti como se me queimassem a mão com um ferro em brasa, mas conforme a dor foi passando eu fiquei com a mão insensível. E não faz nem uma hora! Se eu não soubesse o que acontece com humanos infectados com o “nosso” Enteroviridae, estaria feliz. Em vez disso estou apavorada. Ao menos minha mão não dói mais.

Estou com dor de cabeça, não obstante. Isso é porque o vírus ataca o cérebro e o Enteroviridae na natureza provoca meningite.

Descobrimos o que acontece nos humanos do pior jeito. Depois que todos ficamos com dor de cabeça, fizemos testes e descobrimos que a infecção se espalhara em nosso meio. Nenhum de nós estava são, o que ao menos evitou uma acareação para se descobrir o culpado. Tanto os militares quanto o time científico ficaram doentes. Os soldados não se preocuparam muito, confiando na função primeira da vacina, mas nós sabíamos que o que funcionou nos animais podia não funcionar em nós. Claro, foi muito pior em nós.

Descobrimos o quanto a reanimação dos tecidos podia ser mórbido em humanos quando o Doutor Silva veio a óbito devido à uma reação fatal ao vírus. Foi declarado morto aproximadamente trinta horas após contrair o vírus e a reanimação do cadáver ocorreu alguns minutos depois, não sei precisar. Exceto pelo Cabo Flávio, o “Cabo Setenta”, todos os militares atiraram no corpo reanimado do meu colega e ele não caía, mal sangrava, com os braços estendidos e sempre em minha direção. Sabia que ele me queria, mas não desse jeito. Seus olhos! E o som que saía de sua boca! Só parou quando fuzilaram sua cabeça, arrancando quase que totalmente o crânio.

A autópsia revelou um corpo modificado similar ao dos nossos rhesus, mas não pudemos definir por que o cadáver do Doutor Silva foi reanimado. Empiricamente, apostamos que a chave está no cérebro, pois com a remoção desse órgão o cadáver desabou no chão.

Com o fogo amigo o Tenente Fábio foi atingido por três tiros de pistola .45 e veio a óbito poucos minutos depois. Mais alguns minutos se passaram e o cadáver do Tenente se levantou lentamente, produzindo o mesmo som tenebroso que o Dr. Silva emitiu. Dessa vez os homens sabiam o que fazer e o Capitão Mauro encostou a pistola na fronte do Tenente, com um único tiro o fazendo voltar a ser corpo inerte. Ele, o Capitão, havia sido mordido no braço pelo Dr. Silva.

Definimos o seguinte: o cérebro humano infectado, maior e melhor que o dos outros animais, permanece ativo após a morte permitindo que o corpo reanimado responda ao instinto básico de alimentação. Não sabemos se o corpo ainda seria capaz de se nutrir, mas certamente é um mecanismo de contágio eficiente criado pelo vírus, numa relação similar ao que ocorre entre o mosquito e o agente causador da dengue. Claro, estávamos todos contaminados previamente, mas o cadáver não tinha como saber disso e respondeu à sua programação.

Os homens chamaram os cadáveres ambulantes de zumbis. Não gosto de usar terminologia não-científica, mas estou morrendo e revejo meus conceitos.

...

O Capitão Mauro faleceu aproximadamente duas horas depois de ser mordido pelo zumbi. Não pude conduzir um experimento adequado, mas exames básicos nos levam a acreditar que uma infecção secundária mata aqueles mordidos pelos mortos reanimados. Veios negros se espalham a partir do local aonde fui mordida, exatamente como ocorreu ao Capitão Mauro. Essa infecção não é detida pelos efeitos de nossa vacina por motivos óbvios: trata-se de um subproduto do vírus modificado.

Sinto enrijecimento nas articulações e dor generalizada. Não sei se isso é o que os inoculados sentem ou se é sintoma da infecção. Sinto uma fome terrível, mas estranhamente não sinto vontade de me alimentar do que tenho disponível. A comida regular não me atrai, mas não sei do que sinto falta de comer. É um pouco desesperador e espero que perdoem o embargo na minha voz.

Tive de lidar com os outros zumbis, mas ficou fácil depois da primeira “morte”. Eles são lentos, mas persistentes. Só com tiros na cabeça consegui pará-los e não estava habituada a atirar contra alvos móveis e o prospecto de atirar num colega, ainda que zumbificado, era pavoroso. Porém, o medo de ser mordida mais uma vez era muito mais forte. Quando vieram a mim eu os matei.

Fui mordida realizando testes preliminares em um zumbi. Trabalhava no cadáver do Dr. Hugo quando este reviveu. Era o início dos estudos e não sabíamos que algo assim poderia acontecer. Ele havia sido baleado na cabeça, mas aparentemente não foi destruído o suficiente do seu cérebro...

...Deus, como dói...

Vou me deitar um pouco. Sinto vertigens. Depois volto a registrar a evolução da infecção.

...

São pouco mais de onze da manhã. Sinto-me muito bem. Talvez eu seja imune ou coisa assim, ou meu organismo tenha entrado em equilíbrio com o vírus como planejávamos desde o início. O fato é que não sinto mais dores e a febre se foi. Ainda estou enrijecida, mas a falta de sono e a doença recente podem explicar isso. Preciso fazer exames. Mais uma coisa: recebi por e-mail a informação de que estão mandando um time para aqui para baixo. Logo vou sair e acredito que serei a chave para a panacéia universal que estivemos criando aqui.

...

Os exames... Deus... mostraram que eu sou uma zumbi agora. Não sei por que continuo raciocinando quando os meus pares não conseguiram fazê-lo. A febre se foi porque meu corpo estava esfriando desde o meu óbito. Continuo enrijecendo. Ocorre hidrólise no meu tecido muscular, o que caracteriza o início do rigor mortis. Não estou respirando também e para falar inalo o ar e daí sai a fala, mas respiração não é mais necessária. Também percebi mudança na coloração da minha pele. Com algor mortis, livor mortis e rigor mortis, utilizei a equação de Glaister para estimar a hora da minha morte e estimo meu óbito em mais de oito horas, mas essa estimativa tem de estar errada. Já vi pelas câmeras de segurança que um time de soldados utilizando roupas próprias para lidar com risco biológico entrou nas instalações e não sei o que farão ao me encontrar. Serei mantida em um zoológico? Serei exterminada? Farão testes intermináveis comigo? Aparentemente não entrarei em decomposição e posso durar muito, muito tempo. Sinto que deveria estar desesperada e de fato estou descrente de minha condição, mesmo com todas as provas científicas corroborando o quadro terrível, mas sinto uma estranha calma e tremenda fome.

Fome de quê?

Vou falar com os soldados e explicar o que aconteceu aqui. Fim da gravação.

...

REGISTRO OFICIAL Nº 28.764

Em busca realizada no Complexo Epsilon os agentes encontraram a Doutora Prado vagando pelo complexo, totalmente demente. Foi contida com algemas de plástico descartáveis e uma mordaça improvisada quando esta tentou morder. Os trajes anti-tumulto adaptados para risco biológico que vestiam foram mais que suficientes para evitar infecções. Ao procurarem por respostas em seu computador pessoal, encontraram nada além de dados já conhecidos, fotos de família e um diário. O dia 1009, registro último, era repleto de gemidos graves e mal-articulados.

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