segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Sangue de Lobo




Parte 3 – Estrada aberta

Ele caminhava. Pensava melhor caminhando. Podia ir de ônibus, mas eles sempre o deixavam enjoado em viagens de mais de quarenta e cinco minutos de duração. Andaria até enjoar, daí pegaria uma carona ou coisa assim. “Depois de vê.”

Levava consigo apenas uma muda de roupas simples e bastante dinheiro. Fazia trabalhos escusos para gente ruim que identificava facilmente só de olhar. Quem não presta tem um jeito de predador que chamava sua atenção, sendo que normalmente era notado também por estas pessoas como alguém para fazer algo realmente memorável, mas para se contratar uma vez, talvez duas. Seu olhar perturbava mesmo esse tipo de gente, mas não a ponto deles não pensarem numa atrocidade para que o “cachorro louco” fizesse por eles. Ao menos foi assim que o chamavam nessa cidade. Na próxima inventaria um nome de gente.

Era assim que arrumava dinheiro. Matava por dinheiro. Era algo tão brutal que os jornais, por vezes diziam que era um grupo matando outro. Estavam quase certos: era um grupo que o contratava para exterminar outro. Interessante como a polícia não o podia rastrear mas os pilantras e facínoras em geral em pouco tempo sabiam de sua presença na cidade. Talvez a polícia não quisesse encontrar com ele. Sua experiência lhe dizia que a maior parte dos policiais trabalha basicamente como qualquer outro funcionário público e, ao ver uma cena dantesca, como as cenas de crime que pintava, nunca mais queria entrar numa delas. Muitos pediam transferência para áreas administrativas ou mesmo a dispensa da corporação. A besta, claro, agradecia à essa decisão. Os poucos que pensavam que a vida na polícia era como nos filmes do Steven Seagal eram desencorajados a continuar suas ações com uma simples visita à suas casas e famílias. Matar policiais era um erro que ele nunca cometia. Ele sabia ser persuasivo.

A caminhada, para ele, era uma forma de meditação e muitas coisas eram pesadas na sua muito própria balança moral. Não seguia nenhuma religião e não se importava com isso, sendo que sua moralidade se baseava no que ele sentia ser certo ou errado no momento adequado, como um bicho do mato.

Andar era uma delícia. Afastava-se dos problemas dos homens e podia explorar os arredores com seus supersentidos. O cheiro das plantas e fungos no ar, o som imperceptível para humanos de animais próximos escavando, andando ou comendo, o pensamento leve e sem planos. Sentia por algum motivo que a nova cidade seria melhor de alguma maneira, um novo começo. Passava as mãos por plantas rasteiras próximas e mesmo o som de seus pés esmagando a areia era muito gostoso. Se não fosse tão dependente dos confortos da cidade, morar no campo seria uma boa opção, mas tentara isso algumas vezes e não conseguiu qualquer nível de sucesso. Da última vez, a ausência quase total de internet foi o que lhe atraiu de volta à área urbana. Da primeira, foi uma profissional que lhe tolerasse o sexo furioso. Morar no campo também era garantia de atrair caçadores, pois todos logo estavam sabendo do novato estranho e nas cidades grandes ninguém se importa muito com ninguém. Melhor assim.

Ele ia sozinho pela estrada. O cheiro e os sons das pessoas que ele encontraria no caminho chegavam primeiro, muito antes da visão daquele que os produzia. Pelo cheiro e sons, podia decidir se deveria se esconder na mata próxima ou só passar pelos transeuntes de cabeça baixa. Esquecera seus óculos escuros. O Sol não lhe incomodava, mas olhares curiosos sim.

Já era noite quando ele desistiu de andar, mas não passava nenhum carro. Estava faminto também.

Para manter suas forças, seu metabolismo extravagante, precisava comer grandes quantidades de carne. Proteína, em geral, era muito necessária, e ele poderia arrumar isso com leite, ovos e diversos cereais – e ele consumia tudo isso – mas a carne pesava no seu estômago e lhe lançava numa espécie de estupor bom. Era o mais próximo que podia chegar de ter paz. Se não comesse carne antes de dormir, os pesadelos viriam. Precisava de carne, muita carne.

Se embrenhou no mato. Detestava caçar, mas era desconcertantemente bom nisso. Podia encontrar uma saborosa carniça também, Já que não havia pessoas para lhe julgar. O cheiro da carniça lhe parecia algo quente e denso, como uma sopa olfativa, e sempre enchia sua boca de baba. Era também muito mais fácil comer carne parcialmente necrosada do que carne crua. Seus dentes aguentavam, mas simplesmente não eram feitos pra isso. Logo avistou um rato grande e gordo e o pegou fácil. O animal guinchou uma vez e teve a cabeça arrancada por uma mordida e o sangue bebido em segundos. Ainda espremeu o bicho para aproveitar as últimas gotas. Estava muito gostoso. Beber sangue era um truque que aprendeu lendo histórias de cowboy, só não estava escrito em lugar nenhum que isso dava extremo mau hálito.

Com seus olhos podia ver detalhes que ainda lhe maravilhava. Graças à sua regeneração aprimorada vivera muito mais que qualquer humano e não tinha a menor ideia de quanto tempo mais viveria, se não fosse morto por um caçador mais esperto. Mesmo assim, ainda ficava emocionado com alguns aspectos da natureza que só ele podia notar. Sentia-se em quase em estado de graça nessas horas, que só não estava completo pela consciência de que era considerado inimigo da humanidade. Ele mesmo considerava-se assim, mas entendia que isso era devido à inveja dos homens, que jamais teriam o que ele tem.

Era bom ser um monstro. Tinha quase cento e quarenta anos e absoluta certeza disso.

Mais algum tempo se passou e ele encontrou um jovem caititu, que matou por asfixia apertando a garganta do porco com os dentes. Depois de lhe comer as pernas e boa parte do lombo, dormiu abraçado com os restos.

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