terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Sangue de Lobo





Parte 4 – Nova Cidade

Aquele bairro fedia a mijo. Onde quer que fosse, sentia o cheiro rançoso da urina seca. Isso não o incomodava pelo odor, mas seus instintos e olfato lhe diziam que tipo de pessoas haviam ali. Um dos truques que aprendera ao longo da vida foi a perceber que tipo de totem estava com a pessoa. “Totens” era como chamava uma espécie de espírito animal que percebia nos humanos, sendo que esse totem regia tudo: da aparência geral ao modus operandi. Mulher alta, quadris grandes e membros fortes, rosto também grande e cabelos exuberantes costumam ser éguas. Homens brincalhões, crânio pequeno e olhos vivos são macacos. Pessoas magras demais costumam ser pássaros, gazelas ou coisa assim. Mas naquele bairro havia grande concentração do pior tipo de totem, os ratos.

Os ratos eram imprevisíveis se pressionados e preferiam viver totalmente aleijados do que morrer, o que os levava a cometer atos terríveis. Caso se ligassem a um indivíduo especialmente ruim, absorvia toda a ruindade e não via problema algum em viver à sombra do mentor. Eram mesquinhos, glutões, libertinos. Enfim, possuíam uma coleção de deméritos que lhe incomodava profundamente. Qualquer um deveria ter um mínimo de código moral e esse tipo de lixo humano não tinha nenhum que pudesse identificar. Tinha um preconceito forte assim que identificava um rato, mas ao menos era uma habilidade que precisava acionar conscientemente, do contrário iria sair matando um a um, silenciosamente e com requintes de crueldade, vendo o que cada um aguenta de dor e sofrimento, como fazem os gatos.

“Melhor ir ao próximo bairro.”

O que ele aprendeu com sua habilidade de enxergar totens foi que, assim como na natureza, a maioria dos animais eram herbívoros e tinham a tendência de se reunir em manadas. Como um lobo, outro tipo de animal que anda em grupos, não deveria ter companheiros? O fato é que nunca viu outro lobo em sua longa estrada. Melhor assim, não queria encontrar outra criatura ruim como ele.

Este bairro era de ruminantes. Bois, éguas, gazelas, um ou outro paquiderme. Era uma configuração que lembrava a pradaria africana, exceto que não haviam zebras e gnus. Esta configuração lhe agradava, mas morar ali seria mais trabalhoso com todas aquelas pessoas “família” por perto. Nos bairros miseráveis ninguém nem lhe olhava no rosto. Resolveu dar uma chance e alugou um lugar por ali, adotando um nome. Nas primeiras semanas saía pra caminhar todos os dias e assim entendia os horários de tudo, da padaria à frequência das pessoas nas ruas.

Um dia, caminhando numa rua que sabia que não haveria ninguém naquela hora, encontrou um homem diferente de todos os que já havia visto até então. Era realmente estranho, pois teve a impressão de que ele surgiu literalmente do nada apenas para que o lobo o percebesse, deu um sorriso e um aceno brusco com a cabeça e sumiu mais uma vez, dobrando a esquina. O lobo evitou seguir por ali, mas nem mesmo saberia dizer o porquê.

E o motivo era o medo.

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