Juízo
Final – Parte 5 – Viagem só de ida
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Dona Antônia, a senhora não pode ir. Se já vai ser difícil pra mim lá fora, pra
senhora...
-
Se ninguém vai te ajudar eu vou. É difícil para todo mundo, mas não dá para
ficar se escondendo. Dá até vergonha ver esse bando de macho trancado te
mandando lá pra fora para morrer sozinho. Vais precisar de ajuda e eu vou te
ajudar.
Houve
um murmúrio geral com as duras palavras de Antônia, mas entre os que sentiam
culpa ou medo ninguém levantou a voz para se pronunciar claramente.
Dona
Antônia foi até as netas e a filha, que choravam.
-
Maria, você fica aqui com as meninas. Deus sabe que elas precisam da sua
proteção e são ainda muito jovens. Tu tens muito que ensinar pra elas. Eu estou
velha e já te passei meu conhecimento.
A
família se abraçou. Luiz pensou na promessa que fez ao finado pai da família.
Não precisavam de proteção. Ficariam melhor ali.
Porra,
ele mesmo queria ficar ali. Era a segunda vez que lhe mandavam abandonar o
conforto e a segurança de um abrigo em busca de recursos para a sobrevivência.
Alguns
homens foram até o telhado do DB e de lá jogaram uma grande panela de inox com um
monte de bombinhas coladas com fita adesiva dentro. O barulho amplificado atraiu
todos os mortos-vivos para a direção oposta de onde sairia o pequeno grupo de
busca. Abriram uma porta próxima ao carro que levou Luiz ao hipermercado e logo
estavam do lado de fora, andando com pressa.
Luiz
foi em direção ao carro, pensando em Ismael e no jeito que ele o olhou antes de
morrer. Mais uma vez lembrou da promessa e fez um esforço para deixar isso pra
lá. Nunca foi de se importar com promessas, mas o último pedido de um homem que
viu morrer – devorado – tinha forte apelo. Começou a soluçar.
Estavam
armados com pouco mais que tacapes improvisados. Podiam afastar alguns dos
monstros que chegassem mais perto, mas não podiam permitir que os malditos se
amontoassem ao redor. Luiz se dirigia em linha reta para o carro e parecia não
haver nenhum tipo de impedimento. Os vidros estavam imundos com o sangue seco e
podre dos zumbis, com marcas de mãos negras por toda a lataria. Imaginou que a
grande mancha no chão ao lado do carro devia ser por causa do Ismael, que teve
a barriga aberta por uma dúzia de mãos carcomidas. Muitas mãos mais vieram em seguida
e disputaram avidamente suas entranhas, com o sangue se derramando aos
borbotões.
Ao
menos foi rápido, pensou.
O
cheiro era insuportável. Era incrível. Não era só a carne podre, era algo mais.
Isso não aparecia nos filmes e não poderia ser descrito, mas ele imaginou que
algum cineasta deveria fazer os personagens reclamarem disso mais vezes nas
películas.
As
chaves deviam estar ainda na ignição e havia gasolina no tanque. Ele só queria
chegar logo ao carro e sair dali com Dona Maria Antônia para outro lugar.
Dirigiria ao Débora, onde morava a sua mãe. Não tinha esperanças de encontrá-la
viva, mas a casa era segura e o conjunto não era densamente povoado.
A
porta do motorista estava aberta como eles deixaram. A caminhada até aqui
durara apenas 30 segundos, mas parecia uma eternidade. Não queria dar carona
para mais ninguém e não se afastava muito do grupo, mas caminhava sempre para o
carro, com Dona Antônia do lado. De repente contornava o carro pela parte de
trás, uma vez que a frente estava encostada na parede, enquanto Antônia
esperava do lado do passageiro, sem encostar na maçaneta imunda.
Ao
chegar à porta, porém, viu Ismael zumbificado sentado no banco do motorista,
com as mãos no volante na posição “cinco pras três” e olhando para o pára-brisa.
Subitamente o morto olhou em direção à Luiz e com uma espécie de gargarejar
repugnante se jogou para fora do veículo com velocidade assustadora. Luiz
bloqueou o ataque com o bastão de um metro e vinte que tinha nas mãos e foi
imediatamente derrubado. A coisa à sua frente segurava firmemente o bastão com
as duas mãos exatamente como o homem caído, mas estava por cima e tentava
morder a face deste. Sem ter como largar o bastão e sem forças para um supino,
Luiz estava completamente desesperado, sentindo literalmente o hálito da morte
em seu rosto. Olhou para o resto do grupo, que se afastava aterrorizado, e teve
certeza de que sua vida havia chegado ao fim, quando repentinamente percebeu o
monstro mais leve, o levantou para cima e para o lado, se levantando
rapidamente depois disso. Era Dona Maria Antônia que o puxara pela camisa, por
trás.
Agora
podia ver melhor seu agressor. Ele não tinha carne nas pernas, que eram apenas
ossos limpos ligados por fragmentos de cartilagem. Sua barriga estava oca e a
face, praticamente intocada, tinha olhos arregalados em um misto de desespero e
desejo. Andava agora com as mãos, arrastando-se.
Dona
Antônia bateu forte com um martelo de bater bife no crânio do morto, mas ele
continuava. “Também não é como nos filmes”, pensou Luiz, enquanto usava seu
bastão como alavanca para virar o finado amigo. Uma vez virado, o zumbi foi
imobilizado no chão com a ponta do bastão no seu peito e Antônia acertou-lhe a
fronte, afundando seu rosto.
Mesmo
assim, o morto ainda tentava se levantar. E agora gritava.
Dona
Antônia passou a martelar freneticamente. Pedaços do conteúdo da cabeça
espirravam do nariz e boca do monstro que não parava de gritar. Longos segundos
se passaram até que eles conseguiram que o desgraçado parasse de se mexer. Naquele
momento nenhum deles sentia qualquer simpatia pelo falecido.
Entraram
no carro, também emporcalhado por dentro, e se arrancaram dali, já com os
mortos-vivos atrapalhando o caminho.
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