segunda-feira, 3 de junho de 2013


Juízo Final – Parte 5 – Viagem só de ida

- Dona Antônia, a senhora não pode ir. Se já vai ser difícil pra mim lá fora, pra senhora...
- Se ninguém vai te ajudar eu vou. É difícil para todo mundo, mas não dá para ficar se escondendo. Dá até vergonha ver esse bando de macho trancado te mandando lá pra fora para morrer sozinho. Vais precisar de ajuda e eu vou te ajudar.

Houve um murmúrio geral com as duras palavras de Antônia, mas entre os que sentiam culpa ou medo ninguém levantou a voz para se pronunciar claramente.

Dona Antônia foi até as netas e a filha, que choravam.

- Maria, você fica aqui com as meninas. Deus sabe que elas precisam da sua proteção e são ainda muito jovens. Tu tens muito que ensinar pra elas. Eu estou velha e já te passei meu conhecimento.

A família se abraçou. Luiz pensou na promessa que fez ao finado pai da família. Não precisavam de proteção. Ficariam melhor ali.

Porra, ele mesmo queria ficar ali. Era a segunda vez que lhe mandavam abandonar o conforto e a segurança de um abrigo em busca de recursos para a sobrevivência.

Alguns homens foram até o telhado do DB e de lá jogaram uma grande panela de inox com um monte de bombinhas coladas com fita adesiva dentro. O barulho amplificado atraiu todos os mortos-vivos para a direção oposta de onde sairia o pequeno grupo de busca. Abriram uma porta próxima ao carro que levou Luiz ao hipermercado e logo estavam do lado de fora, andando com pressa.

Luiz foi em direção ao carro, pensando em Ismael e no jeito que ele o olhou antes de morrer. Mais uma vez lembrou da promessa e fez um esforço para deixar isso pra lá. Nunca foi de se importar com promessas, mas o último pedido de um homem que viu morrer – devorado – tinha forte apelo. Começou a soluçar.

Estavam armados com pouco mais que tacapes improvisados. Podiam afastar alguns dos monstros que chegassem mais perto, mas não podiam permitir que os malditos se amontoassem ao redor. Luiz se dirigia em linha reta para o carro e parecia não haver nenhum tipo de impedimento. Os vidros estavam imundos com o sangue seco e podre dos zumbis, com marcas de mãos negras por toda a lataria. Imaginou que a grande mancha no chão ao lado do carro devia ser por causa do Ismael, que teve a barriga aberta por uma dúzia de mãos carcomidas. Muitas mãos mais vieram em seguida e disputaram avidamente suas entranhas, com o sangue se derramando aos borbotões.

Ao menos foi rápido, pensou.

O cheiro era insuportável. Era incrível. Não era só a carne podre, era algo mais. Isso não aparecia nos filmes e não poderia ser descrito, mas ele imaginou que algum cineasta deveria fazer os personagens reclamarem disso mais vezes nas películas.

As chaves deviam estar ainda na ignição e havia gasolina no tanque. Ele só queria chegar logo ao carro e sair dali com Dona Maria Antônia para outro lugar. Dirigiria ao Débora, onde morava a sua mãe. Não tinha esperanças de encontrá-la viva, mas a casa era segura e o conjunto não era densamente povoado.

A porta do motorista estava aberta como eles deixaram. A caminhada até aqui durara apenas 30 segundos, mas parecia uma eternidade. Não queria dar carona para mais ninguém e não se afastava muito do grupo, mas caminhava sempre para o carro, com Dona Antônia do lado. De repente contornava o carro pela parte de trás, uma vez que a frente estava encostada na parede, enquanto Antônia esperava do lado do passageiro, sem encostar na maçaneta imunda.

Ao chegar à porta, porém, viu Ismael zumbificado sentado no banco do motorista, com as mãos no volante na posição “cinco pras três” e olhando para o pára-brisa. Subitamente o morto olhou em direção à Luiz e com uma espécie de gargarejar repugnante se jogou para fora do veículo com velocidade assustadora. Luiz bloqueou o ataque com o bastão de um metro e vinte que tinha nas mãos e foi imediatamente derrubado. A coisa à sua frente segurava firmemente o bastão com as duas mãos exatamente como o homem caído, mas estava por cima e tentava morder a face deste. Sem ter como largar o bastão e sem forças para um supino, Luiz estava completamente desesperado, sentindo literalmente o hálito da morte em seu rosto. Olhou para o resto do grupo, que se afastava aterrorizado, e teve certeza de que sua vida havia chegado ao fim, quando repentinamente percebeu o monstro mais leve, o levantou para cima e para o lado, se levantando rapidamente depois disso. Era Dona Maria Antônia que o puxara pela camisa, por trás.

Agora podia ver melhor seu agressor. Ele não tinha carne nas pernas, que eram apenas ossos limpos ligados por fragmentos de cartilagem. Sua barriga estava oca e a face, praticamente intocada, tinha olhos arregalados em um misto de desespero e desejo. Andava agora com as mãos, arrastando-se.

Dona Antônia bateu forte com um martelo de bater bife no crânio do morto, mas ele continuava. “Também não é como nos filmes”, pensou Luiz, enquanto usava seu bastão como alavanca para virar o finado amigo. Uma vez virado, o zumbi foi imobilizado no chão com a ponta do bastão no seu peito e Antônia acertou-lhe a fronte, afundando seu rosto.

Mesmo assim, o morto ainda tentava se levantar. E agora gritava.

Dona Antônia passou a martelar freneticamente. Pedaços do conteúdo da cabeça espirravam do nariz e boca do monstro que não parava de gritar. Longos segundos se passaram até que eles conseguiram que o desgraçado parasse de se mexer. Naquele momento nenhum deles sentia qualquer simpatia pelo falecido.

Entraram no carro, também emporcalhado por dentro, e se arrancaram dali, já com os mortos-vivos atrapalhando o caminho.

CONTINUA NA SEMANA QUE VEM.

Nenhum comentário: