Juízo
Final – Parte 7 – Novo Isolamento
Depois
de muitos gritos para que largassem as armas e muitos gritos de “não estamos
armados” em resposta, descobriram que estavam cercados pelos ocupantes do
Carrefour, que ao ouvirem o barulho das caixas sendo empilhadas entenderam que
estavam sendo invadidos pela horda balouçante que estava sempre ali do outro
lado da rua.
Logo
depois foram levados ao salão principal da administração e se desenrolou uma
discussão sobre o que fazer com eles. Luiz lembrava bem demais da discussão
similar que ocorrera no DB da Cidade Nova, mas temia que aconteceria algo pior
que ficar trancado por um dia inteiro no frigorífico.
Ele
estava certo: resolveram trancar o homem e a velha por dois dias no frigorífico
desativado.
Sem
ter ninguém para acalmar, Dona Maria Antônia se chegou a Luiz e se puseram a
conversar. A velha era boa de conversa e passaram muito tempo falando, em geral
sobre amenidades. Quando Luiz tentou perguntar como ela estava sobre as netas e
a filha que ficaram pra trás foi bruscamente interrompido. A avó não queria
ficar pensando nisso. Era uma pessoa prática e se preocupar com elas não
levaria à nada.
Quando
não estavam conversando Dona Maria Antônia rezava. Ela murmurava e por isso
Luiz sabia que eram rezas católicas. Ficara meio desnorteado com o tempo que
ficou desmaiado, mas deveriam estar se encaminhando para a Páscoa, festa
importante para o catolicismo.
Não
queria interromper, mas conforme o tempo ia passando e as rezas não se
interrompiam, Luiz teve de perguntar.
- Quando
foi que isso começou? A senhora tem alguma idéia de porque isso está
acontecendo?
- Isso
começou com a Quaresma. Acho que vai acabar junto com ela – disse Dona Maria
Antônia.
-
Junto com a Quaresma? Você acha que isso é obra de Deus? – Luiz perguntou.
-
O Diabo não tem poder para trazer o Fim dos Tempos e só Deus pode ressuscitar
os mortos. – Foi a resposta da velha.
Luiz
não era muito religioso, e estava até inclinado a concordar com a história do
Apocalipse, mas não podia acreditar que fosse acabar em meros quarenta dias.
Dona
Maria Antônia seguia rezando. Na catequese Luiz aprendeu que o tempo da
Quaresma era – ou deveria ser – um tempo de purificação e penitencia através de
rezas e jejum. Já se passara um dia e não lhes trouxeram nem mesmo água, então
só precisava rezar para entrar no clima. O caso é que rezar não estava nos
planos de Luiz, pois se Deus permite que uma coisa assim aconteça não receberia
oração nenhuma dele. Ir pro Inferno? Seria pior que isso que Manaus se tornou?
Tinha sorte de estar trancado no escuro. Escapou por pouco de ser destruído por
criaturas que não deveria existir fora da ficção.
Dois
dias agora. Abriram as portas.
Falavam
com eles, os cativos, como se estivessem OK, mas não estavam. Ambos se
encontravam terrivelmente debilitados pelo confinamento sem comida ou água.
Falavam com o homem e a velha, mas estes mal entendiam o que estava
acontecendo. Manaus é quente e a desidratação ocorre muito rápido. Em algum
momento alguém se lembrou de que eles estavam assim e daí trouxeram uma espécie
de sopa aos prisioneiros, que dormiram imediatamente após se alimentarem, ali
no chão mesmo, ao lado dos pratos.
Dormiram
bastante e não foram incomodados. Quando acordou, Luiz viu que Dona Maria
Antônia já estava de pé, conversando com uma senhora de rosa, a mesma que lhes
dera sopa.
Essa
senhora se voltou para Luiz e lhe disse simplesmente “é Domingo de Alegria”.
“Porra
nenhuma”, pensou Luiz, “Alegria é o caralho”. Mas não pôde deixar de notar que
Dona Maria Antônia estava até bem animada ao falar com essa senhora, uns dez
anos mais nova que ela.
-
Ela também acha que isso vai passar com a Quaresma. – disse Dona Maria Antônia
- No fim da Quaresma teremos a Páscoa, época em que Jesus derrotou a morte e
passou a ensinar outras coisas aos apóstolos por outros quarenta dias.
-
Dona Antônia, não tem jeito das coisas voltarem ao normal depois disso. Tá tudo
mito ruim! – Luiz replicou.
-
Antes não estava bom. Vai ser tudo diferente depois disso.
Luiz
se afastou rapidamente. Não tinha nada contra a velha, mas não iria ficar
ouvindo calado e não queria discutir agora que finalmente estava livre. Não
havia ninguém vigiando a velha ou ele e sentiu que as coisas iriam melhor ali
do que fora no supermercado da Cidade Nova.
Depois
de chegar ao supermercado propriamente dito, viu que as pessoas não estavam
muito preocupadas com ele. Na verdade, mal lhe davam atenção. Ninguém ali
parecia preocupado com lhe explicar regras ou coisa assim. Ninguém parecia ser
o chefe.
“Bom.
Muito bom.”
Havia
uma espécie de posto de observação montado perto de uma das janelas altas
daquele lugar. As janelas eram altas demais para que se pudesse olhar por elas
do nível do chão e foram construídas obviamente para iluminar. Os ocupantes do
lugar fizeram uma espécie de rampa de entulho e havia uma jovem cabocla, muito
bonita, olhando pela janela. A mulher o viu, fez sinal que se aproximasse
fazendo silêncio com um bonito sorriso nos lábios.
Ele
se aproximou. A mulher lhe apontou o exterior e disse que deveria olhar o tempo
todo, pois os mortos nunca deixavam de tentar entrar depois que descobriram que
havia gente em um lugar.
-
Olha lá: eles nunca deixam de tentar entrar nos apartamentos. Ainda há gente
por lá. – Disse ela.
-
Pelo menos estão seguros – começou Luiz, pensando em sua mãe, mas a mulher
ficou séria e fez que não com a cabeça. Seus cabelos longos e negros, presos
num rabo de cavalo no alto da nuca, balançavam graciosamente. Ela era mais alta
que ele.
-
Eles não dever ter mais comida em casa. Acho que por morarem perto do
supermercado não se preocupavam muito em guardar muita comida em casa. Vez em
quando um pula pela janela. Estamos bem melhores do que eles.
Nesse
momento, viu exatamente isso do outro lado da rua. De uma dos apartamentos mais
baixos do Parque Sabiá, um homem pulou para o chão, quebrou ambas as pernas no
processo e foi imediatamente cercado pelos zumbis. Não teve nenhuma chance. O
gemido dos monstros ficou tão alto que não podiam ouvir os gritos do pobre
diabo.
-
Acho que esse tentou sair pra procurar comida, mas a maioria pula pra se matar,
mesmo. – dizia a mulher, com certo fascínio no rosto. Se ela soubesse que a mãe
do homem ao seu lado poderia estar ali, teria fingido compaixão pelos coitados
do outro lado da rua?
Luiz
olhou mais uma vez para a mulher, que olhava a movimentação do lado de fora.
Olhou bem. Ela era mesmo muito bonita.
Estaria
Luiz apaixonado por ela?
CONTINUA
SEMANA QUE VEM.