segunda-feira, 16 de setembro de 2013


Juízo Final – Parte 13 – Ponta Negra

Sem uma palavra, os homens começaram a atirar. Pedaços de carne podre voavam por todos os lados. Não era como nos filmes, com balas demais no ar, mas tiros precisos nas cabeças com algumas rajadas cortando pernas na altura dos joelhos. Todos sabiam o que fazer – ao menos os soldados – e ordens não eram dadas. Ninguém perguntava em voz alta o porquê do refúgio tão bem escondido ter caído ou o que fariam a seguir.

Simplesmente atiraram em todos.

Buscas posteriores localizaram uma avó e seu neto escondidos em um ponto remoto da ilha. Contando com o homem que viram antes foram três sobreviventes no total. Ainda não sabiam como essa desgraça havia acontecido, mas não havia tempo. Retiraram os sobreviventes do local e mesmo os soldados que ficaram para dar uma última busca seriam tirados dali em um outro momento. Luiz descobriu que helicópteros carregam menos gente do que imaginava.

No helicóptero a senhora ainda abraçada ao neto explicou, calmamente, que um dos homens levantou durante a noite como um dos cadáveres ambulantes e matou sua esposa e filhos sem muito ruído. Daí saíram de lá e foram entrando em cada uma das cabanas. Mesmo com a gritaria, quase ninguém conseguiu evitar ser morto ou ferido pelos mortos, e quase todos voltaram também como mortos-vivos. A exceção foi um bebê completamente devorado pelos pais zumbificados.

Luiz passava mal com a perspectiva de que nem os militares poderiam controlar a praga, mas Felipe estava estranhamente resignado. Este olhou para seu irmão e foi logo dizendo “Era um dos cenários possíveis. Quando os militares tomam um curso de ação, fazem projeções do que pode acontecer e traçam planos de contingência. Por isso que eles nem falam quando a situação surge. Como eu disse, são ótimos soldados.”

- Mas e agora?
- Agora vamos voltar pra base, seguir com o plano da Ponta Negra, continuar a procurar sobreviventes.
- Não! E agora, para onde vamos? Qual o novo refúgio?
- Por hora o refúgio principal é a base do São Jorge, o 1º BIS. Depois a gente deve refazer o refúgio de Anavilhanas.
- De novo? Mas deu tudo errado por lá!
- Não! Alguém devia estar infectado, mas esta é a melhor solução. Vamos ser mais rigorosos nas quarentenas e deixar guardas ou coisa assim, mas insistiremos com o plano. Não tínhamos sentinelas disponíveis, mas já estamos treinando novos recrutas.

Quando Felipe falou em quarentena Luiz lembrou do tempo em que passou trancado na escuridão total de um frigorífico desativado em duas ocasiões. Um frio lhe correu a espinha.

Logo estavam de volta ao 1º BIS. Os homens se preparavam para a operação na Ponta Negra. Luiz e Felipe embarcaram também em um dos muitos caminhões com cobertura de lona que os transportariam ao antigo cartão postal da cidade.

O caminha para a Ponta Negra foi tranquilo. Ao passarem pela Igreja da Restauração ainda viram uma multidão de cadáveres com roupa de culto, mas a maioria estava muito aglomerada no interior para poder sair correndo atrás dos carros. Ao chegar à Ponta Negra, no entanto, a coisa foi diferente. O lugar estava apinhado de mortos-vivos. Via-se “gente” com roupa de praia, de vendedor e até de casa, pois há muitos condomínios de luxo na área. Misturados na podridão, Luiz podia ver tanto cunhã poranga quanto dondoca cheia de jóias.

“Como passar?” pensava Luiz quando ouviu o som inconfundível de centenas de tiros.

Um dos caminhões, mas afastado dos outros, retirou a lona e todos os soldados atiravam com armas incrivelmente barulhentas. O som dos mortos subiu a um nível alarmante e Luiz quase entrou em pânico, até que percebeu a manobra: os zumbis andavam em direção aos disparos do caminhão afastado e livravam a área que os outros veículos precisariam usar para passarem ao posto avançado. Não estava claro como o pessoal do caminhão que atraía os monstros iria escapar dali depois que milhares daquelas coisas os cercassem, mas deveria existir algum um plano, não é?

Não ficaram para ver.

Depois de um curto trajeto foi possível ver a armadilha: um desnível natural entre a rua e uma determinada área da praia da Ponta Negra estava sendo arrumada como um fosso e muitos homens já estavam esperando numa área protegida. Uma espécie de ponte de madeira levava os homens de caminhão até aquele ponto e ainda havia um tipo de flutuante bem a vista no rio, com alguns barcos de prontidão.

Não ouviam mais os tiros. Passado algum tempo, soldados avançaram com granadas que pareciam latas e cornetas de ar comprimido. As bombas de efeito moral e as cornetas fizeram um barulho irritante, mas que cumpriu sua função atraindo os mortos-vivos. Os homens pararam com as cornetas e empunharam as armas. Muitos dos zumbis começaram a cair no poço improvisado, o som de ossos e barrigas explodindo - um som molhado e nojento - era perfeitamente audível. Cabeças também se abriam expondo seu conteúdo repelente. Logo os cadáveres caíam da beira numa quantidade tal que lembrava uma cachoeira torpe e o som dos corpos se espatifando crescia e mudava, conforme deixava de haver espaço no chão e os zumbis caíam uns por cima dos outros. A altura era tal que qualquer humano morreria, mas as criaturas já estavam mortas e muitos já não estavam inoperantes após a queda, mas não podiam se mover conforme mais e mais deles continuavam a cair. Em um dado momento a torrente era incessante, mas aí foi diminuindo e chegou o momento em que muitos mortos vivos estavam na beira apenas olhando para baixo, sem avançar, sem cair.

Os soldado passaram a atirar. Os mortos não recuavam e eram abatidos facilmente, mesmo com a distância. Quando um deles morria um que estava logo atrás avançava e era também abatido, até que não restou mais nenhum deles. Luiz se perguntava como não os seguiram pela ponte de madeira, até que percebeu que uma seção dela havia sido retirada, como um painel, provavelmente pelo último dos integrantes do comboio.

Luiz sentiu a esperança renascer, ainda que os gemidos, o cheiro podre e a visão de gente que deveria estar morta e enterrada nunca mais o deixassem por completo.

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