segunda-feira, 4 de março de 2013

Bestial


Ele estava correndo há tempo demais. “Não sou nenhum queniano” pensou. Os pés doíam, os joelhos doíam, as coxas doíam. O pior era a boca seca e os pulmões queimando, pois estava acostumado com a dor. O seu tamanho avantajado não lhe permitiria correr muito mais e, ele sabia disso com uma certeza mortal, não podia parar agora.

Não sem um abrigo.

Se dirigia para o cais. O plano era entrar num grande cargueiro e se ocultar entra as muitas caixas por lá. Sabia bem o que lhe aconteceria se lhe descobrissem, como a polícia costeira poderia ser acionada e facilmente lhe pegariam, como um rato preso no banheiro. Do jeito que lhe odiavam, atirariam nele no escuro do porão e ninguém faria muitas perguntas.

Era porão o nome? Não sabia e não se importava. Queria viver e mataria quantos fossem necessários para isso.

O maior navio que encontrou era vermelho e preto. Ele achou esquisito, mas foi entrando. Parecia estar em obras, com gente soldando, furando e martelando por todos os lados. Os trabalhadores estavam ocupados como formigas e estavam todos trabalhando num ritmo acelerado. Olhou para si e achou que suas roupas pereciam com as dos estivadores que levavam a carga para dentro e para baixo. Tamanho ele tinha, também.

“Onde está seu capacete?” Se virou e de início não viu quem havia lhe gritado isso. Depois olhou para baixo e viu um homem que era metade de alguém, mas tinha a má atitude de quem estava acostumado a ser obedecido sem questionamentos. A surpresa e o medo de ser apanhado por um instante deixaram paralisado o fugitivo, que olhava o baixinho com olhos arregalados e queixo caído. “Aqui”, disse o pequenino, enquanto lhe empurrava o EPI no estômago com força. Segurou o capacete laranja por um instante, examinando-o com indisfarçada curiosidade. “Vá trabalhar, porra! Não vê que estamos com pressa?”

Meteu então o capacete na cabeça e se virou em direção às cargas, pensando “se fosse na cadeia, já estaria morto”. Sorriu com satisfação ao lembrar de uma vez em que socara um homem no rosto com tanta força que este perdeu o olho esquerdo.

A carga era composta por grandes barris de metal, principalmente, mas havia caixas de madeira também. Percebendo que os trabalhadores trabalhavam em conjunto carregando as coisas entendeu eram “de quebrar”. Resolveu deixar que os outros lhe ajudassem, ainda que pudesse sozinho com o peso de qualquer coisa ali. Era bom saber que era o mais forte que conhecia.

Os tonéis pareciam ter líquidos dentro e as caixas cheiravam muito mal, num misto de desinfetante e podridão. Depois de algum tempo percebeu que os tonéis tinham uma pequena máquina com display eletrônico nas tampas.

Mal podia pensar nisso, no entanto, pois o estivador que o ajudava com a carga falava demais. Acostumado a ser evitado, o fugitivo era um homem de poucas palavras, ao passo que seu novo colega não fechava a boca. As histórias que contava eram engatadas uma nas outras e então revisitadas, numa verborragia que lhe doía a cabeça. Na única vez em que teve um companheiro de cela falastrão nem pensou em pedir para calar a boca, achando mais fácil estrangulá-lo durante o sono.

Ao final do dia o navio estava perceptivelmente mais baixo na água. Aqueles que trabalhavam nos reparos terminaram bem antes que os estivadores, que labutaram até depois de acabar a luz do Sol.

Agora todos comiam com vontade grandes quantidades de arroz, feijão, macarrão e picadinho. Bebiam refrigerante. Perguntou se não havia algo mais forte, mas descobriu que, por ainda estarem no barco, não podiam beber como homens. Questões trabalhistas, coisas de sindicato. Ele nunca se deu bem com esse tipo de limitações. Fazia o que queria e por isso havia sido preso da primeira vez, ainda na adolescência.

Pensando bem, esse foi o real motivo todas as vezes.

De barriga cheia e exausto por todo o esforço desde a prisão, sentiu vontade de dormir. Olhou em volta e repentinamente percebeu que o navio deixara o cais. Controlou sua agitação ao lembrar que tudo estava indo melhor que o plano original e, sentindo-se seguro, dormiu pesadamente.

Acordou antes dos seus colegas, mais por hábito do que por falta de sono. Dormiam como se eles próprios fossem, também, carga. Saiu para a luz do dia, curtindo a recém-adquirida liberdade e calculou que devia passar das seis da manhã. O ar marinho lhe fazia bem e ao longe podia ver uma mancha no horizonte que adivinhou ser terra.

“Terra a vista!”, pensou.

Era uma ilha, mas não sabia dizer se era das grandes. Era grande o suficiente para abrigar uma estrada de terra batida que levava para algum lugar mais para dentro da floresta. Ao desembarcar, percebeu que a praia era muito maior do que parecia à distância, e decidiu que a ilha era grande.

Tirou a carga do navio com o resto dos estivadores, num trabalho que levou tempo demais. A areia da praia atrapalhava o transporte até os caminhões que já estavam à espera do barco. Ainda assim era um bom trabalho. Fazer força não lhe incomodava, era melhor que viver fugindo. Divertia-se ao pensar que este era o primeiro trabalho honesto em toda a sua vida, mas que não seria pago porque seu nome não consta na folha de pagamento. Trabalhava com um sorriso no rosto.

Seu pagamento seria a liberdade.

Não poderia ficar na ilha. Por maior que esta fosse, não seria difícil encontrá-lo. Seus dois metros e sete de altura combinados com mais ou menos cento e oitenta quilos faziam dele um gigante. Some-se a isso a tendência a resolver as coisas no braço e temos alguém que, numa ilha, é como um farol para a polícia costeira.

Quando terminavam de carregar o último caminhão, chegou outro caminhão vazio para transportar os trabalhadores para o local de destino dos tonéis e caixas. “Somos mesmo carga” pensou ao subir no caminhão.

A parada final era um prédio muito bem construído para uma ilha que, percebia-se, era isolada e desabitada. Parecia algo feito para gente trabalhar, não para estocar aquele lixo. Aquela carga parecia lixo, com o cheiro das caixas e tonéis com jeito de dejetos industriais. Deve ser lixo. Porque encher um prédio tão bonito com toda aquela merda? Ele poderia morar tranquilamente por lá, não fosse sua condição de fora-da-lei. O lugar todo ficaria com aquele fedor terrível e aí ninguém mais poderia residir ali.

Mas ficar não era uma opção.

Havia mais trabalhadores por lá, estivadores que já estavam na ilha. Eram poucos e estavam descarregando os primeiros caminhões enquanto os últimos eram carregados, basicamente para que os primeiros caminhões voltassem para buscar os estivadores que descarregariam o grosso da carga. Estes primeiros estivadores entraram no caminhão que trouxe os últimos juntamente com os motoristas dos outros caminhões e partiram rumo ao barco. Até mesmo aqueles que indicaram onde descarregar os caminhões partiram em um jipe muito antes de tudo acabar.

Um mau pressentimento cruzou a mente do gigante, mas ele procurou se distrair com o trabalho. Imaginou que a fuga estava indo bem, que ninguém estava ali para lhe prender, que apesar de chamar atenção ninguém parecia estar se importando com ele e que só estava estranhando porque não conhecia o trabalho. Mais ninguém parecia ligar para a falta de gerenciadores no trabalho e, ao lembrar-se do homenzinho que lhe empurrou o capacete, também achou bom estar cercado de gente fazendo força apenas. Estava até contente com isso quando lhe chegou o desgraçado que falava mais que um locutor. Seu rosto não escondeu o desagrado, mas o tagarela não parecia notar. Respirou fundo e lamentou não ter fones de ouvido tocando música bem alta para ignorar acintosamente o colega. Ser calado o transformou num alvo do falador, que o interpretou como bom ouvinte. Agora ele sofria em silêncio, quase desejando ter matado o infeliz enquanto todos dormiam e jogado o corpo pela amurada do navio.

Terminado o serviço e decorrido algum tempo, ficou claro que teriam de dormir por ali. Havia um refeitório com comida semi-pronta e provisões, mas ninguém para servir. Tímidos a princípio, principalmente porque havia câmeras filmando tudo, ninguém oi se servir, mas o fugitivo não pensava assim. Para ele isso queria dizer que podiam comer o que quisessem, como bem entendessem. Se serviu primeiro, sem se preocupar se algum sindicato iria lhe incomodar depois. Depois de requentar tudo com microondas e fogões, todos comeram até passar mal.

Depois do jantar ele ficou pensando nas câmeras. Será que apareceriam com a polícia pela manhã?

Por volta das três da manhã desperta num pulo. Um mau hábito que desenvolveu ao longo dos anos em que esteve por trás das grades. Seu corpo aprendeu que os homens surtam mais ou menos nesse horário, então seu relógio biológico ajusta o sono para “leve”. Ele mesmo nunca sonha, tendo apenas pesadelos recorrentes em que está sendo perseguido. Diversas vezes acordou às três da manhã sem lembrar-se do sonho, mas com a forte impressão de que o estavam caçando.

Ouviu então um som estranho.

Foi investigar. Apesar do seu tamanho, era bem silencioso. Olhou ao redor e ninguém, aparentemente, estava desperto. O barulho vinha de fora e parecia ser alto para que se pudesse ouvir do alojamento, mas era só aquela estranha propriedade que o silêncio da noite tem de amplificar o som. Parecia algo raspando.

Ao passar pela porta do alojamento o cheiro lhe atingiu em cheio.

Era o cheiro das caixas, mas muito pior. Se ele achava que estava ruim antes ele agora sabia como o Inferno deveria cheirar. Certo de que algo estava muito errado, voltou ao dormitório e cobriu o rosto com uma fronha previamente molhada no banheiro. Viu isso num filme de incêndio e estava ajudando.

O cheiro indicava que uma das caixas estava vazando o conteúdo ou coisa assim. Aquilo só podia ser tóxico e o bom senso dizia que deveria se mandar, mas ele nunca seguiu o bom senso de bom grado. Seguiu em direção ao local onde os tonéis e caixas estavam. Outros homens ficariam com medo, mas o desconhecido o deixava excitado, querendo brigar.

No local em que a carga estava estocada o cheiro era muito pior. Imaginou se o tecido encharcado no seu rosto estava funcionando e o tirou por um instante para checar. Estava, pois o fedor lhe fez rodar a cabeça com velocidade. Recolocando a máscara no lugar, pensou como seria possível desmaiar apenas com um cheiro ruim enquanto seu estômago dava voltas. Pôs na cabeça que não vomitaria, uma vez que não sabia quando voltaria a iria comer, que o odor não o venceria. Estava em meio às cargas, ouvindo muito bem o barulho. Tratava-se de alguém forçando uma das caixas de madeira. Sabia como era o som de mãos naquelas caixas porque suas mãos estiveram lá, fazendo-as ranger, o dia todo. Alguém estava socando, empurrando e puxando uma das esbranquiçadas tampas de pinus, mas parecia não estar tendo sucesso. As luzes estavam acesas e ele foi seguindo o barulho, imaginando quem seria louco de continuar com isso depois que o fedor indizível começou a se espalhar, até que viu algo que o fez duvidar de seus sentidos.

O que ele viu foi um magro braço verde bem esticado para fora de uma das caixas, tentando abrir mais um pouco a tampa semi-aberta para que o resto do corpo o seguisse. Era tão insólito que ele ficou lá, olhando, por uns cinco segundos, que lhe pareceram uma eternidade. Era o braço, de aspecto torpe, que fedia tanto. Não parecia podre, estava mais pra mumificado, mas a coisa que o tornara verde exalava violentamente um buquê de carniça com ácido que fazia seus olhos arderem levemente. Olhou em volta e imaginou que todas as caixas deveriam ter coisas similares e que os tonéis deveriam estar cheios do tóxico verde. Aquilo era muito errado e fazia sentido esconder tudo em uma ilha particular, mas ele ainda achava ruim desperdiçar um prédio como aquele.

Não era do seu feitio avisar alguém sobre qualquer coisa, preferindo resolver ao seu modo o que quer que fosse. Não queria acordar ninguém pregando a tampa de volta à caixa, daí simplesmente esperou que o monstro que estava lá saísse para poder fazer algo com ele. Estava demorando muito para que o dono do braço saísse da caixa, o que deu tempo ao fugitivo para imaginar toda a sorte de coisas. Era tóxico de pegar? Se eu socá-lo na cara posso me contaminar? Posso ser contaminado pelo sangue se este espirrar em mim? Como ele pode estar vivo doente assim? Como pode ter sobrevivido tanto tempo preso e doente desse jeito?

Olhou em volta e viu que as câmeras também estavam lá, filmando-o com máscara de ladrão na cara, em meio à carga secreta. Não gostou. Mesmo de máscara, era um filho da mãe enorme facilmente reconhecível. Quando voltassem à ilha certamente teria problemas. “Foda-se”, pensou. Não deixaria aquela coisa andando pelo prédio. Andou pelo armazém e encontrou duas grossas luvas de borracha um tanto pequenas para sua grandes mãos, mas ele as fez caber. Em seguida rasgou em tiras um cobertor que encontrou por lá e as enrolou como se fossem cordas. Enrolou, por sua vez, essas cordas nos punhos como um tipo de proteção para as luvas de borracha, pois sabia bem o tipo de estrago que seus golpes poderiam fazer e não queria que algum osso de nariz partido furasse a luva e lhe arranhasse. Sobraram cordas e ele pensou em amarrar o oponente depois de um bom soco no queixo.

Isso até que o monstro saiu da caixa e lhe olhou. Seu rosto era sem expressão, com aspecto de caveira e dentes brilhantes à mostra. O cabelo como algas negras coladas pela substância verde no topo da cabeça e o nariz muito pontudo, longo e afilado. Os grandes olhos eram saltados, injetados e brilhavam levemente. Após um segundo de indecisão, a coisa soltou um grito inumano, que parecia um arroto muito forte, longo e sem emoção bem definida. No instante seguinte, ouviu-se de todas as caixas o som de pancadas e raspagem, como se centenas de mãos estivessem batendo em muitas portas. Era como o som de uma chuva de granizo.

O bandido deu então um passo pra frente ao mesmo tempo em que desferia seu melhor soco na criatura, que ainda berrava. O punho afundou fazendo um buraco no meio do rosto verde, com gosma da mesma cor espirrando pelos ouvidos e pelos buracos dos olhos, que pularam de suas órbitas. “Que caralho de asa!” O cheiro era ainda pior, se é que isso era possível, mas a exclamação era ensejada pelos outros monstros que surgiriam e pelos colegas que assomariam na porta e pensariam que a culpa era dele. Fez muita coisa criminosa na vida, mas aquilo não era culpa sua e quem lhe olhasse torto receberia um pouco do que o monstro acabara de provar.

Saiu correndo em direção ao dormitório. Ninguém vinha em sua direção. Entrou lá e viu os estivadores amontoados, quase em pânico com o som que vinha do depósito. Ficou com ódio de todos aqueles covardes e gritou “monstros” a plenos pulmões, apontando para a direção de onde viera. Ninguém se moveu, mas a expressão de pânico deu lugar a uma expressão inquisitiva. “Como assim, monstros?” pareciam dizer seus rostos.

Uma pequena discussão se seguiu, quando lhe explicaram que aquilo são dejetos radioativos e que ele deveria ir se lavar. O gigante respondia que radiação não faz ver coisas e que ele sabia muito bem o que havia matado: um monstro. Além disso, alguém observou que dejetos radioativos brilham e não tem cheiro de podre, ao contrário da gosma que lhe cobria a mão direita, mas com a maioria iletrada e temerosa falando ao mesmo tempo isso não foi ouvido ou aceito por quase ninguém.

“Porra!” gritou o ex-detento ao mesmo tempo em que deixava o recinto e se dirigia ao refeitório. Lá pegou uma faca de bom tamanho, um cutelo e arrancou um cano de metal das paredes. Voltou ao depósito e percebeu que os monstros ainda não haviam conseguido sair das caixas. Pensou como seria bom incendiar aquilo, mas percebeu que não teria tempo e imaginou que algum sistema anti-chamas apagaria tudo antes de maiores estragos. Focou na tarefa primária que tinha em mente, que era decapitar o monstro que caíra vítima de seu soco e levar a cabeça para tirar os incréus de seu estupor.

Jogou a cabeça no meio dos colegas, o que os fez cobrirem os narizes. Eles não queriam acreditar, mas nem ele acreditou de pronto. Sem tempo a perder, voltou até o local dos monstros e trancou as portas, passando o cano de chumbo entre os puxadores das portas e dobrando-o de modo a impossibilitar a saída das criaturas. Agora vários deles berravam e a feia gritaria fazia mal para a sua cabeça. Pelo menos aquele grupo de covardes na outra sala não poderá negar os gritos.

De volta ao dormitório quase levou uma pancada na cabeça. Pensavam que ele era uma daquelas coisas. Ele sabia que era um mal entendido, mas mesmo assim chutou tão forte o agressor entre as pernas que sentiu a bacia do outro deslocar. Tomando o porrete dele, a perna de uma das camas, percebeu que todos estavam armados, mas que ninguém iria tomar satisfações pelo caído. Explicou rapidamente como a sua máscara ajudava com o cheiro e mandou que o imitassem. Daí seguiram para o local de pesadelo, de onde vinham urros tétricos. O grandalhão explicou que ninguém poderia deixar aquilo continuar, que eles não teriam como lutar com monstros em terreno aberto e que sequer sabiam se viria ajuda. Os malditos fedorentos estavam em maior número, mas num corredor apertado seu maior número de nada significaria. Todos ali eram fortes e mais que suficientes para enfrentar os monstros. Mas para que isso desse certo, precisariam de todos trabalhando juntos.

“Quem é você para nos dar ordens?” perguntou um deles. “Teu pai” foi a resposta, seguida de uma cabeçada no nariz que o mandou pro chão. Mais ninguém se opôs à ele e nenhum tentou fugir. Nem mesmo quando ele começou a desentortar o cano que trancava as portas que os separavam do inominável.

O depósito se abriu num instante com o peso de dezenas de corpos apoiados nas portas duplas. O cheiro era impossível, muitos vomitaram compulsivamente e ficaram automaticamente fora de combate. Dando exemplo, o bruto espatifou a cabeça do inimigo mais próximo com a madeira e destruiu o crânio de outro que estava no chão pisando com fúria incontida, espirrando miolos verdes por todos os lados. Logo todos estavam matando com certa facilidade. Os monstros não tinham chance. Eram lentos e fracos demais em comparação com os estivadores. Logo o medo diminuiu frente à ameaça reles, já que o cheiro era o pior que tinham a oferecer.

Uma felicidade geral correu entre os homens. Ninguém morreu, exceto as criaturas verdes. Mas o mesmo não acontecia com o fugitivo. Ele não sabia quando parar uma vez iniciado o combate e, embrutecido, seu coração não queria desacelerar. Sempre tivera esse problema. Tinha de canalizar o ódio para algum novo alvo. Daí gritou para as câmeras que registravam tudo “filhos da puta!” e arremessou o cutelo contra a mais próxima e quase morreu de raiva ao errar miseravelmente. “Calma, cara”, alguém falou, mas do meio da multidão ficou oculto. Ele tinha o direito de ficar com raiva e ninguém lhe diria para acalmar. Se não fosse um filho da puta ruim estariam todos mortos a essa altura. Pegou então um longo banco de madeira e procedeu a quebra de cada câmera no recinto.

Depois de conseguir a desejada privacidade virou para os homens e disse algo como “não sei vocês, mas pra mim isso tudo é de propósito”. Passou a explicar que deveriam acabar com o resto das câmeras e incendiar o prédio com as latas dentro. Nada de bom poderia vir dali. Ele, através de toda uma vida de depravação e violência, aprendera a reconhecer a maldade de longe. A ilusão de uma vida simples o anuviada por um dia inteiro, mas já chega.

Claro, ninguém quis seguir seu plano.

Já passava das cinco da manhã. Deixou o prédio com todos lá dentro e rumou para a praia em um dos muitos caminhões que estavam por lá. O fogo ardendo brando no seu peito. Antes de entrar no veículo ainda viu uma câmera numa pequena palmeira apontando para a porta da frente do prédio. Agarrou a planta e a sacudiu até que a câmera caísse de lá e então pisou forte nela. Dirigiu pela mata até a água sem problemas, pois na estrada não havia desvios ou cruzamentos. Não pensava em nada. Não havia um plano. Só queria sair de perto dos desgraçados antes que começasse a quebrar costelas e partir mandíbulas.

Alcançou o mar junto com a alvorada. Os primeiros raios do Sol revelaram ao longe o feio barco vermelho e preto vindo em direção à praia. Era tarde para tentar esconder o caminhão, mas talvez pudesse se esconder e voltou para a floresta a pé o mais rápido que pôde. Queria pegar os malditos por o terem deixado numa ilha com monstros e covardes, mas sabia que poderiam estar acompanhados de policiais armados. Se não portassem armas de fogo, o que nunca é o caso, poderia pegá-los todos. Então se escondeu e aguardou.

Desceram muitos homens armados, mas nenhum tinha jeito de “homem da lei”. Estavam de preto, sem insígnias. Pareciam mais para mercenários ou coisa assim. Carregavam submetralhadoras e outras armas menores. O fugitivo achou interessante. Eles certamente seriam um desafio, mas suas mortes não chamariam atenção. Seus financiadores esconderiam seus corpos e qualquer evidência, o que iria lhe favorecer. Se por acaso fossem bons o suficiente para matá-lo tudo bem, pois sabia que morreria assim algum dia. Não há nada de muito bom que valha a pena continuar a viver até ficar velho.

Não viu entre eles qualquer rosto conhecido. Nenhum dos homens ali presentes fazia parte da equipe que orientou o trabalho, não viu os motoristas ou os estivadores que partiram com o navio. Aqueles homens estavam ali para matar as testemunhas do conteúdo das caixas e sequer tocariam nos tonéis de líquido desconhecido. Tinha certeza de que o que quer que esteja nos barris de metal transformara pessoas nos monstros que espedaçou. Um plano torpe tomava forma em sua mente doentia.

Os mercenários embarcaram no caminhão, aparentemente sem suspeitar de que ele não deveria estar lá, desaparecendo em meio às árvores. O bandido olhou o barco durante vários minutos para ter certeza de que ninguém iria atirar nele quando o invadisse, mas não viu nenhuma sentinela. Entrou cuidadosamente mesmo assim, ciente que ele mesmo não ficaria à vista. Caminhou o que parecia ser uma eternidade, pois o navio era grande, até que encontrou alguém que parecia ser o capitão do navio fumando solitariamente num corredor. Avançou nele com velocidade e tapou sua boca com tanta força que sua vítima pensou que deslocaria o queixo. Avisou que se não falasse baixo o mataria e tirou a mão. Tiveram uma rápida conversa onde ficou claro que era mesmo o capitão, que ele não estava acostumado a trabalhar com mercenários e que estava sozinho na embarcação. Dois dos mercenários o ajudavam a navegar. O gigante lhe disse então que não esperariam pelo retorno dos assassinos e desembarcou com o capitão, que o seguia obediente.

Ouviu tiros ao longe. Certamente os estivadores estavam sendo mortos como cães raivosos.

Entraram na mata. Orientava-se pela estrada que levava ao prédio no centro da ilha com o cuidado de se manter longe dela. Não queria ser visto. Não sabia se o capitão iria dar um grito de alerta. Olhou bem pro sujeito ao seu lado e não sentiu esse tipo de ameaça vindo dele. Na verdade o homem era tão passivo que lhe dava uma raiva latente, nem mulheres deveria ser assim. Ter o capitão ao seu lado significava que os mercenários não poderiam deixar a ilha e teriam de procurar por ele na floresta, onde os mataria.

Depois de um tempo chegaram ao prédio. O cheiro ruim estava no ar, mas havia algo mais: uma névoa verde e densa estava flutuando ao seu redor. Não estava mais com a sua máscara e o fedor era quase insuportável. Grossas lágrimas desciam dos seus olhos. O capitão começou a reclamar do cheiro e levou um golpe curto com as costas da mão direita, que ainda estava enfaixada com a proteção improvisada. Tirou as calças do homem e o amarrou à uma árvore, desacordado, pelos braços. Tirou em seguida sua camisa, molhou numa poça no chão e entrou.

Era o Inferno.

Não só havia monstros verdes por todos os lados como podia reconhecê-los. Eram os estivadores e alguns dos assassinos, com terríveis feridas, tripas penduradas, marcas de mordidas, braços decepados, pernas com ossos à mostra. Alguns se arrastavam com os poucos membros que lhes restavam, outros andavam em sua direção. Nenhum corria, mas todos o queriam. Nenhum deveria estar vivo.

“Vamos remediar isso.”

Foda-se se estão mortos ou vivos, eu sou maior que todos eles. São muitos, mas são lentos. Já havia lutado com vinte homens uma vez e os fez recuar aterrorizados. Não temia ninguém e estava acostumado a ser temido por todos. Era mais monstro que humano, jamais encontrara alguém sequer parecido com ele. Se apoderou de um pé-de-cabra e avançou sem hesitar, espalhando o caos, rachando crânios. Os inimigos vinham em ondas, igualmente destemidos, mas seus olhos mostravam uma casca vazia, inexpressivos e arregalados. Os minutos passavam lentamente com os mortos-vivos fazendo um coral de vozes nefastas, em uníssono. O som lhe enchia a cabeça e lhe enlouquecia. Percebeu logo que eles só permaneciam mortos se lhes destruísse a cabeça e um novo vigor tomou conta de seu corpo fatigado. “Calem a boca, porra!” bradava enquanto descia sua arma improvisada nas cabeças desprotegidas, que se quebravam facilmente. Agora os zumbis se penduravam em seus membros e a ação diminuía a marcha, mas não parava. Não podia parar. Não havia opção. Sequer passou pela sua cabeça parar.

Repentinamente, tudo silenciou, com o último dos malditos exterminado. Entendeu que o som que emitiam fazia as criaturas convergirem em sua direção, o que lhe poupava o trabalho de caçá-los. Estava, pela primeira vez em muito tempo, satisfeito de tanto lutar. Saiu do prédio se sentindo feliz, se é que tal coisa existe, apenas para ouvir um lamento triste vindo da direção do seu prisioneiro. Havia se esquecido por completo do capitão do navio. Ao chegar nele, viu que um dos monstros havia se desgarrado dos demais e estava mastigando o pênis e os testículos de sua vítima, que atada à árvore só repetia “ele comeu meu pau”. O zumbi estava partido na linha da cintura e se abraçava às pernas do Capitão para se alimentar.

Baixou o pé-de-cabra na fronte no alto da cabeça do morto-vivo, num movimento já familiar. O único que poderia lhe tirar da ilha agora sangrava copiosamente e não resistiria muito. O bandido então se sentou por perto e ficou assistindo o homem morrer. Queria ver como acontecia.

Não demorou nada. Após a morte, a reanimação ocorreu rápido. Este monstro, porém, não era verde. Descobriu que a mordida transformara este homem, não o gás como acontecera com os outros. Ao menos era assim que pensava. Levantou para ir embora e a criatura começou a emitir aquele som odioso. Afastava-se depressa quando mudou de idéia, deu a volta e começou a furar e a bater no Capitão com o metal em suas mãos. O longo grito continuava, até que destruiu o tórax, mas nem por isso o mostro parou. Era um experimento. Partiu então diversos ossos, mas o zumbi continuava com a cabeça bem à frente, querendo morder. Mesmo depois que o eviscerou e arrancou sua mandíbula. Parecia que não sabia que não poderia comer ou manter o que engoliu dentro de si. Certamente não sentia dor.

Sua mente clareou e o fugitivo percebeu que havia sido contaminado. Em meio a toda loucura, havia sido arranhado e mordido aqui e ali. Nenhum deles havia lhe tirado pedaço, mas seus braços e pernas estavam cobertos de feridas e as feridas, ainda que superficiais, imundas com o sangue podre. Quanto tempo levaria para que se transformasse? Como poderia sair da ilha e procurar ajuda? Quem poderia lhe ajudar? Se conseguisse sair da ilha, quem em sã consciência iria chegar perto dele?

Se iria morrer, precisava se vingar. Como os assassinos não retornaram, alguém iria voltar para descobrir o que aconteceu e confirmar a morte dos estivadores. Sem testemunhas, sem complicações. Mas aqueles que sabiam do conteúdo dos tonéis poderia demorar demais e sabia que não tinha muito tempo. Precisava apressar as coisas. Causou então um pequeno incêndio na floresta, próximo à praia em direção ao continente. Para evitar a investigação da Guarda Costeira, os responsáveis por toda aquela droga deveriam mandar alguém assim que a fumaça subisse muito. Exausto, se recostou e dormiu.

Acordou sentindo um cheiro bom de comida. Percebeu então que estava há um dia sem comer. Olhou em volta e não viu alimento. Seus membros estavam pesados e caminhava com dificuldade. Seu tamanho trabalhava contra ele dessa vez, com a gravidade comprimindo-o. Não se sentia cansado, mas enrijecendo. Achou normal já que dormira no chão da mata, com uma pedra por travesseiro. Caminhava em direção à comida, mas não identificava o cheiro. Parecia carne de caça recém-abatida, ou talvez fosse cordeiro. Só a fome o incomodava. Seguiu caminhando sempre, sem pensar muito no assunto. Logo, não pensava em nada...

...só o que restou foi a fome.

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