Ele estava correndo há tempo demais. “Não sou nenhum
queniano” pensou. Os pés doíam, os joelhos doíam, as coxas doíam. O pior era a
boca seca e os pulmões queimando, pois estava acostumado com a dor. O seu
tamanho avantajado não lhe permitiria correr muito mais e, ele sabia disso com
uma certeza mortal, não podia parar agora.
Não sem um abrigo.
Se dirigia para o cais. O plano era entrar num grande
cargueiro e se ocultar entra as muitas caixas por lá. Sabia bem o que lhe
aconteceria se lhe descobrissem, como a polícia costeira poderia ser acionada e
facilmente lhe pegariam, como um rato preso no banheiro. Do jeito que lhe
odiavam, atirariam nele no escuro do porão e ninguém faria muitas perguntas.
Era porão o nome? Não sabia e não se importava. Queria
viver e mataria quantos fossem necessários para isso.
O maior navio que encontrou era vermelho e preto. Ele
achou esquisito, mas foi entrando. Parecia estar em obras, com gente soldando,
furando e martelando por todos os lados. Os trabalhadores estavam ocupados como
formigas e estavam todos trabalhando num ritmo acelerado. Olhou para si e achou
que suas roupas pereciam com as dos estivadores que levavam a carga para dentro
e para baixo. Tamanho ele tinha, também.
“Onde está seu capacete?” Se virou e de início não viu
quem havia lhe gritado isso. Depois olhou para baixo e viu um homem que era
metade de alguém, mas tinha a má atitude de quem estava acostumado a ser
obedecido sem questionamentos. A surpresa e o medo de ser apanhado por um
instante deixaram paralisado o fugitivo, que olhava o baixinho com olhos
arregalados e queixo caído. “Aqui”, disse o pequenino, enquanto lhe empurrava o
EPI no estômago com força. Segurou o capacete laranja por um instante,
examinando-o com indisfarçada curiosidade. “Vá trabalhar, porra! Não vê que
estamos com pressa?”
Meteu então o capacete na cabeça e se virou em direção
às cargas, pensando “se fosse na cadeia, já estaria morto”. Sorriu com
satisfação ao lembrar de uma vez em que socara um homem no rosto com tanta
força que este perdeu o olho esquerdo.
A carga era composta por grandes barris de metal,
principalmente, mas havia caixas de madeira também. Percebendo que os
trabalhadores trabalhavam em conjunto carregando as coisas entendeu eram “de
quebrar”. Resolveu deixar que os outros lhe ajudassem, ainda que pudesse
sozinho com o peso de qualquer coisa ali. Era bom saber que era o mais forte
que conhecia.
Os tonéis pareciam ter líquidos dentro e as caixas
cheiravam muito mal, num misto de desinfetante e podridão. Depois de algum
tempo percebeu que os tonéis tinham uma pequena máquina com display eletrônico
nas tampas.
Mal podia pensar nisso, no entanto, pois o estivador
que o ajudava com a carga falava demais. Acostumado a ser evitado, o fugitivo
era um homem de poucas palavras, ao passo que seu novo colega não fechava a
boca. As histórias que contava eram engatadas uma nas outras e então
revisitadas, numa verborragia que lhe doía a cabeça. Na única vez em que teve
um companheiro de cela falastrão nem pensou em pedir para calar a boca, achando
mais fácil estrangulá-lo durante o sono.
Ao final do dia o navio estava perceptivelmente mais
baixo na água. Aqueles que trabalhavam nos reparos terminaram bem antes que os
estivadores, que labutaram até depois de acabar a luz do Sol.
Agora todos comiam com vontade grandes quantidades de
arroz, feijão, macarrão e picadinho. Bebiam refrigerante. Perguntou se não
havia algo mais forte, mas descobriu que, por ainda estarem no barco, não
podiam beber como homens. Questões trabalhistas, coisas de sindicato. Ele nunca
se deu bem com esse tipo de limitações. Fazia o que queria e por isso havia
sido preso da primeira vez, ainda na adolescência.
Pensando bem, esse foi o real motivo todas as vezes.
De barriga cheia e exausto por todo o esforço desde a
prisão, sentiu vontade de dormir. Olhou em volta e repentinamente percebeu que
o navio deixara o cais. Controlou sua agitação ao lembrar que tudo estava indo melhor
que o plano original e, sentindo-se seguro, dormiu pesadamente.
Acordou antes dos seus colegas, mais por hábito do que
por falta de sono. Dormiam como se eles próprios fossem, também, carga. Saiu
para a luz do dia, curtindo a recém-adquirida liberdade e calculou que devia
passar das seis da manhã. O ar marinho lhe fazia bem e ao longe podia ver uma
mancha no horizonte que adivinhou ser terra.
“Terra a vista!”, pensou.
Era uma ilha, mas não sabia dizer se era das grandes.
Era grande o suficiente para abrigar uma estrada de terra batida que levava
para algum lugar mais para dentro da floresta. Ao desembarcar, percebeu que a
praia era muito maior do que parecia à distância, e decidiu que a ilha era
grande.
Tirou a carga do navio com o resto dos estivadores,
num trabalho que levou tempo demais. A areia da praia atrapalhava o transporte
até os caminhões que já estavam à espera do barco. Ainda assim era um bom
trabalho. Fazer força não lhe incomodava, era melhor que viver fugindo. Divertia-se
ao pensar que este era o primeiro trabalho honesto em toda a sua vida, mas que
não seria pago porque seu nome não consta na folha de pagamento. Trabalhava com
um sorriso no rosto.
Seu pagamento seria a liberdade.
Não poderia ficar na ilha. Por maior que esta fosse,
não seria difícil encontrá-lo. Seus dois metros e sete de altura combinados com
mais ou menos cento e oitenta quilos faziam dele um gigante. Some-se a isso a
tendência a resolver as coisas no braço e temos alguém que, numa ilha, é como
um farol para a polícia costeira.
Quando terminavam de carregar o último caminhão,
chegou outro caminhão vazio para transportar os trabalhadores para o local de
destino dos tonéis e caixas. “Somos mesmo carga” pensou ao subir no caminhão.
A parada final era um prédio muito bem construído para
uma ilha que, percebia-se, era isolada e desabitada. Parecia algo feito para
gente trabalhar, não para estocar aquele lixo. Aquela carga parecia lixo, com o
cheiro das caixas e tonéis com jeito de dejetos industriais. Deve ser lixo.
Porque encher um prédio tão bonito com toda aquela merda? Ele poderia morar tranquilamente
por lá, não fosse sua condição de fora-da-lei. O lugar todo ficaria com aquele
fedor terrível e aí ninguém mais poderia residir ali.
Mas ficar não era uma opção.
Havia mais trabalhadores por lá, estivadores que já
estavam na ilha. Eram poucos e estavam descarregando os primeiros caminhões
enquanto os últimos eram carregados, basicamente para que os primeiros
caminhões voltassem para buscar os estivadores que descarregariam o grosso da
carga. Estes primeiros estivadores entraram no caminhão que trouxe os últimos
juntamente com os motoristas dos outros caminhões e partiram rumo ao barco. Até
mesmo aqueles que indicaram onde descarregar os caminhões partiram em um jipe
muito antes de tudo acabar.
Um mau pressentimento cruzou a mente do gigante, mas
ele procurou se distrair com o trabalho. Imaginou que a fuga estava indo bem,
que ninguém estava ali para lhe prender, que apesar de chamar atenção ninguém
parecia estar se importando com ele e que só estava estranhando porque não
conhecia o trabalho. Mais ninguém parecia ligar para a falta de gerenciadores
no trabalho e, ao lembrar-se do homenzinho que lhe empurrou o capacete, também
achou bom estar cercado de gente fazendo força apenas. Estava até contente com
isso quando lhe chegou o desgraçado que falava mais que um locutor. Seu rosto
não escondeu o desagrado, mas o tagarela não parecia notar. Respirou fundo e
lamentou não ter fones de ouvido tocando música bem alta para ignorar
acintosamente o colega. Ser calado o transformou num alvo do falador, que o
interpretou como bom ouvinte. Agora ele sofria em silêncio, quase desejando ter
matado o infeliz enquanto todos dormiam e jogado o corpo pela amurada do navio.
Terminado o serviço e decorrido algum tempo, ficou
claro que teriam de dormir por ali. Havia um refeitório com comida semi-pronta
e provisões, mas ninguém para servir. Tímidos a princípio, principalmente
porque havia câmeras filmando tudo, ninguém oi se servir, mas o fugitivo não
pensava assim. Para ele isso queria dizer que podiam comer o que quisessem, como
bem entendessem. Se serviu primeiro, sem se preocupar se algum sindicato iria
lhe incomodar depois. Depois de requentar tudo com microondas e fogões, todos
comeram até passar mal.
Depois do jantar ele ficou pensando nas câmeras. Será
que apareceriam com a polícia pela manhã?
Por volta das três da manhã desperta num pulo. Um mau hábito
que desenvolveu ao longo dos anos em que esteve por trás das grades. Seu corpo
aprendeu que os homens surtam mais ou menos nesse horário, então seu relógio biológico
ajusta o sono para “leve”. Ele mesmo nunca sonha, tendo apenas pesadelos
recorrentes em que está sendo perseguido. Diversas vezes acordou às três da
manhã sem lembrar-se do sonho, mas com a forte impressão de que o estavam
caçando.
Ouviu então um som estranho.
Foi investigar. Apesar do seu tamanho, era bem
silencioso. Olhou ao redor e ninguém, aparentemente, estava desperto. O barulho
vinha de fora e parecia ser alto para que se pudesse ouvir do alojamento, mas
era só aquela estranha propriedade que o silêncio da noite tem de amplificar o
som. Parecia algo raspando.
Ao passar pela porta do alojamento o cheiro lhe
atingiu em cheio.
Era o cheiro das caixas, mas muito pior. Se ele achava
que estava ruim antes ele agora sabia como o Inferno deveria cheirar. Certo de
que algo estava muito errado, voltou ao dormitório e cobriu o rosto com uma
fronha previamente molhada no banheiro. Viu isso num filme de incêndio e estava
ajudando.
O cheiro indicava que uma das caixas estava vazando o
conteúdo ou coisa assim. Aquilo só podia ser tóxico e o bom senso dizia que
deveria se mandar, mas ele nunca seguiu o bom senso de bom grado. Seguiu em
direção ao local onde os tonéis e caixas estavam. Outros homens ficariam com
medo, mas o desconhecido o deixava excitado, querendo brigar.
No local em que a carga estava estocada o cheiro era
muito pior. Imaginou se o tecido encharcado no seu rosto estava funcionando e o
tirou por um instante para checar. Estava, pois o fedor lhe fez rodar a cabeça
com velocidade. Recolocando a máscara no lugar, pensou como seria possível
desmaiar apenas com um cheiro ruim enquanto seu estômago dava voltas. Pôs na
cabeça que não vomitaria, uma vez que não sabia quando voltaria a iria comer,
que o odor não o venceria. Estava em meio às cargas, ouvindo muito bem o
barulho. Tratava-se de alguém forçando uma das caixas de madeira. Sabia como
era o som de mãos naquelas caixas porque suas mãos estiveram lá, fazendo-as
ranger, o dia todo. Alguém estava socando, empurrando e puxando uma das esbranquiçadas
tampas de pinus, mas parecia não
estar tendo sucesso. As luzes estavam acesas e ele foi seguindo o barulho,
imaginando quem seria louco de continuar com isso depois que o fedor indizível
começou a se espalhar, até que viu algo que o fez duvidar de seus sentidos.
O que ele viu foi um magro braço verde bem esticado
para fora de uma das caixas, tentando abrir mais um pouco a tampa semi-aberta
para que o resto do corpo o seguisse. Era tão insólito que ele ficou lá,
olhando, por uns cinco segundos, que lhe pareceram uma eternidade. Era o braço,
de aspecto torpe, que fedia tanto. Não parecia podre, estava mais pra
mumificado, mas a coisa que o tornara verde exalava violentamente um buquê de
carniça com ácido que fazia seus olhos arderem levemente. Olhou em volta e
imaginou que todas as caixas deveriam ter coisas similares e que os tonéis
deveriam estar cheios do tóxico verde. Aquilo era muito errado e fazia sentido
esconder tudo em uma ilha particular, mas ele ainda achava ruim desperdiçar um
prédio como aquele.
Não era do seu feitio avisar alguém sobre qualquer
coisa, preferindo resolver ao seu modo o que quer que fosse. Não queria acordar
ninguém pregando a tampa de volta à caixa, daí simplesmente esperou que o
monstro que estava lá saísse para poder fazer algo com ele. Estava demorando
muito para que o dono do braço saísse da caixa, o que deu tempo ao fugitivo para
imaginar toda a sorte de coisas. Era tóxico de pegar? Se eu socá-lo na cara
posso me contaminar? Posso ser contaminado pelo sangue se este espirrar em mim?
Como ele pode estar vivo doente assim? Como pode ter sobrevivido tanto tempo
preso e doente desse jeito?
Olhou em volta e viu que as câmeras também estavam lá,
filmando-o com máscara de ladrão na cara, em meio à carga secreta. Não gostou.
Mesmo de máscara, era um filho da mãe enorme facilmente reconhecível. Quando
voltassem à ilha certamente teria problemas. “Foda-se”, pensou. Não deixaria
aquela coisa andando pelo prédio. Andou pelo armazém e encontrou duas grossas
luvas de borracha um tanto pequenas para sua grandes mãos, mas ele as fez
caber. Em seguida rasgou em tiras um cobertor que encontrou por lá e as enrolou
como se fossem cordas. Enrolou, por sua vez, essas cordas nos punhos como um
tipo de proteção para as luvas de borracha, pois sabia bem o tipo de estrago
que seus golpes poderiam fazer e não queria que algum osso de nariz partido
furasse a luva e lhe arranhasse. Sobraram cordas e ele pensou em amarrar o
oponente depois de um bom soco no queixo.
Isso até que o monstro saiu da caixa e lhe olhou. Seu
rosto era sem expressão, com aspecto de caveira e dentes brilhantes à mostra. O
cabelo como algas negras coladas pela substância verde no topo da cabeça e o
nariz muito pontudo, longo e afilado. Os grandes olhos eram saltados, injetados
e brilhavam levemente. Após um segundo de indecisão, a coisa soltou um grito
inumano, que parecia um arroto muito forte, longo e sem emoção bem definida. No
instante seguinte, ouviu-se de todas as caixas o som de pancadas e raspagem,
como se centenas de mãos estivessem batendo em muitas portas. Era como o som de
uma chuva de granizo.
O bandido deu então um passo pra frente ao mesmo tempo
em que desferia seu melhor soco na criatura, que ainda berrava. O punho afundou
fazendo um buraco no meio do rosto verde, com gosma da mesma cor espirrando
pelos ouvidos e pelos buracos dos olhos, que pularam de suas órbitas. “Que
caralho de asa!” O cheiro era ainda pior, se é que isso era possível, mas a
exclamação era ensejada pelos outros monstros que surgiriam e pelos colegas que
assomariam na porta e pensariam que a culpa era dele. Fez muita coisa criminosa
na vida, mas aquilo não era culpa sua e quem lhe olhasse torto receberia um
pouco do que o monstro acabara de provar.
Saiu correndo em direção ao dormitório. Ninguém vinha
em sua direção. Entrou lá e viu os estivadores amontoados, quase em pânico com
o som que vinha do depósito. Ficou com ódio de todos aqueles covardes e gritou
“monstros” a plenos pulmões, apontando para a direção de onde viera. Ninguém se
moveu, mas a expressão de pânico deu lugar a uma expressão inquisitiva. “Como
assim, monstros?” pareciam dizer seus rostos.
Uma pequena discussão se seguiu, quando lhe explicaram
que aquilo são dejetos radioativos e que ele deveria ir se lavar. O gigante
respondia que radiação não faz ver coisas e que ele sabia muito bem o que havia
matado: um monstro. Além disso, alguém observou que dejetos radioativos brilham
e não tem cheiro de podre, ao contrário da gosma que lhe cobria a mão direita,
mas com a maioria iletrada e temerosa falando ao mesmo tempo isso não foi ouvido
ou aceito por quase ninguém.
“Porra!” gritou o ex-detento ao mesmo tempo em que
deixava o recinto e se dirigia ao refeitório. Lá pegou uma faca de bom tamanho,
um cutelo e arrancou um cano de metal das paredes. Voltou ao depósito e
percebeu que os monstros ainda não haviam conseguido sair das caixas. Pensou
como seria bom incendiar aquilo, mas percebeu que não teria tempo e imaginou
que algum sistema anti-chamas apagaria tudo antes de maiores estragos. Focou na
tarefa primária que tinha em mente, que era decapitar o monstro que caíra
vítima de seu soco e levar a cabeça para tirar os incréus de seu estupor.
Jogou a cabeça no meio dos colegas, o que os fez
cobrirem os narizes. Eles não queriam acreditar, mas nem ele acreditou de
pronto. Sem tempo a perder, voltou até o local dos monstros e trancou as portas,
passando o cano de chumbo entre os puxadores das portas e dobrando-o de modo a
impossibilitar a saída das criaturas. Agora vários deles berravam e a feia
gritaria fazia mal para a sua cabeça. Pelo menos aquele grupo de covardes na
outra sala não poderá negar os gritos.
De volta ao dormitório quase levou uma pancada na
cabeça. Pensavam que ele era uma daquelas coisas. Ele sabia que era um mal
entendido, mas mesmo assim chutou tão forte o agressor entre as pernas que
sentiu a bacia do outro deslocar. Tomando o porrete dele, a perna de uma das
camas, percebeu que todos estavam armados, mas que ninguém iria tomar
satisfações pelo caído. Explicou rapidamente como a sua máscara ajudava com o
cheiro e mandou que o imitassem. Daí seguiram para o local de pesadelo, de onde
vinham urros tétricos. O grandalhão explicou que ninguém poderia deixar aquilo
continuar, que eles não teriam como lutar com monstros em terreno aberto e que sequer
sabiam se viria ajuda. Os malditos fedorentos estavam em maior número, mas num
corredor apertado seu maior número de nada significaria. Todos ali eram fortes
e mais que suficientes para enfrentar os monstros. Mas para que isso desse certo,
precisariam de todos trabalhando juntos.
“Quem é você para nos dar ordens?” perguntou um deles.
“Teu pai” foi a resposta, seguida de uma cabeçada no nariz que o mandou pro
chão. Mais ninguém se opôs à ele e nenhum tentou fugir. Nem mesmo quando ele começou
a desentortar o cano que trancava as portas que os separavam do inominável.
O depósito se abriu num instante com o peso de dezenas
de corpos apoiados nas portas duplas. O cheiro era impossível, muitos vomitaram
compulsivamente e ficaram automaticamente fora de combate. Dando exemplo, o
bruto espatifou a cabeça do inimigo mais próximo com a madeira e destruiu o
crânio de outro que estava no chão pisando com fúria incontida, espirrando
miolos verdes por todos os lados. Logo todos estavam matando com certa
facilidade. Os monstros não tinham chance. Eram lentos e fracos demais em
comparação com os estivadores. Logo o medo diminuiu frente à ameaça reles, já
que o cheiro era o pior que tinham a oferecer.
Uma felicidade geral correu entre os homens. Ninguém
morreu, exceto as criaturas verdes. Mas o mesmo não acontecia com o fugitivo.
Ele não sabia quando parar uma vez iniciado o combate e, embrutecido, seu
coração não queria desacelerar. Sempre tivera esse problema. Tinha de canalizar
o ódio para algum novo alvo. Daí gritou para as câmeras que registravam tudo
“filhos da puta!” e arremessou o cutelo contra a mais próxima e quase morreu de
raiva ao errar miseravelmente. “Calma, cara”, alguém falou, mas do meio da
multidão ficou oculto. Ele tinha o direito de ficar com raiva e ninguém lhe
diria para acalmar. Se não fosse um filho da puta ruim estariam todos mortos a
essa altura. Pegou então um longo banco de madeira e procedeu a quebra de cada
câmera no recinto.
Depois de conseguir a desejada privacidade virou para
os homens e disse algo como “não sei vocês, mas pra mim isso tudo é de
propósito”. Passou a explicar que deveriam acabar com o resto das câmeras e
incendiar o prédio com as latas dentro. Nada de bom poderia vir dali. Ele,
através de toda uma vida de depravação e violência, aprendera a reconhecer a
maldade de longe. A ilusão de uma vida simples o anuviada por um dia inteiro,
mas já chega.
Claro, ninguém quis seguir seu plano.
Já passava das cinco da manhã. Deixou o prédio com
todos lá dentro e rumou para a praia em um dos muitos caminhões que estavam por
lá. O fogo ardendo brando no seu peito. Antes de entrar no veículo ainda viu
uma câmera numa pequena palmeira apontando para a porta da frente do prédio.
Agarrou a planta e a sacudiu até que a câmera caísse de lá e então pisou forte
nela. Dirigiu pela mata até a água sem problemas, pois na estrada não havia
desvios ou cruzamentos. Não pensava em nada. Não havia um plano. Só queria sair
de perto dos desgraçados antes que começasse a quebrar costelas e partir
mandíbulas.
Alcançou o mar junto com a alvorada. Os primeiros
raios do Sol revelaram ao longe o feio barco vermelho e preto vindo em direção
à praia. Era tarde para tentar esconder o caminhão, mas talvez pudesse se
esconder e voltou para a floresta a pé o mais rápido que pôde. Queria pegar os
malditos por o terem deixado numa ilha com monstros e covardes, mas sabia que
poderiam estar acompanhados de policiais armados. Se não portassem armas de
fogo, o que nunca é o caso, poderia pegá-los todos. Então se escondeu e
aguardou.
Desceram muitos homens armados, mas nenhum tinha jeito
de “homem da lei”. Estavam de preto, sem insígnias. Pareciam mais para
mercenários ou coisa assim. Carregavam submetralhadoras e outras armas menores.
O fugitivo achou interessante. Eles certamente seriam um desafio, mas suas
mortes não chamariam atenção. Seus financiadores esconderiam seus corpos e
qualquer evidência, o que iria lhe favorecer. Se por acaso fossem bons o
suficiente para matá-lo tudo bem, pois sabia que morreria assim algum dia. Não
há nada de muito bom que valha a pena continuar a viver até ficar velho.
Não viu entre eles qualquer rosto conhecido. Nenhum
dos homens ali presentes fazia parte da equipe que orientou o trabalho, não viu
os motoristas ou os estivadores que partiram com o navio. Aqueles homens
estavam ali para matar as testemunhas do conteúdo das caixas e sequer tocariam
nos tonéis de líquido desconhecido. Tinha certeza de que o que quer que esteja
nos barris de metal transformara pessoas nos monstros que espedaçou. Um plano
torpe tomava forma em sua mente doentia.
Os mercenários embarcaram no caminhão, aparentemente
sem suspeitar de que ele não deveria estar lá, desaparecendo em meio às
árvores. O bandido olhou o barco durante vários minutos para ter certeza de que
ninguém iria atirar nele quando o invadisse, mas não viu nenhuma sentinela.
Entrou cuidadosamente mesmo assim, ciente que ele mesmo não ficaria à vista.
Caminhou o que parecia ser uma eternidade, pois o navio era grande, até que
encontrou alguém que parecia ser o capitão do navio fumando solitariamente num
corredor. Avançou nele com velocidade e tapou sua boca com tanta força que sua
vítima pensou que deslocaria o queixo. Avisou que se não falasse baixo o
mataria e tirou a mão. Tiveram uma rápida conversa onde ficou claro que era
mesmo o capitão, que ele não estava acostumado a trabalhar com mercenários e
que estava sozinho na embarcação. Dois dos mercenários o ajudavam a navegar. O
gigante lhe disse então que não esperariam pelo retorno dos assassinos e
desembarcou com o capitão, que o seguia obediente.
Ouviu tiros ao longe. Certamente os estivadores
estavam sendo mortos como cães raivosos.
Entraram na mata. Orientava-se pela estrada que levava
ao prédio no centro da ilha com o cuidado de se manter longe dela. Não queria
ser visto. Não sabia se o capitão iria dar um grito de alerta. Olhou bem pro
sujeito ao seu lado e não sentiu esse tipo de ameaça vindo dele. Na verdade o homem
era tão passivo que lhe dava uma raiva latente, nem mulheres deveria ser assim.
Ter o capitão ao seu lado significava que os mercenários não poderiam deixar a
ilha e teriam de procurar por ele na floresta, onde os mataria.
Depois de um tempo chegaram ao prédio. O cheiro ruim
estava no ar, mas havia algo mais: uma névoa verde e densa estava flutuando ao
seu redor. Não estava mais com a sua máscara e o fedor era quase insuportável.
Grossas lágrimas desciam dos seus olhos. O capitão começou a reclamar do cheiro
e levou um golpe curto com as costas da mão direita, que ainda estava enfaixada
com a proteção improvisada. Tirou as calças do homem e o amarrou à uma árvore,
desacordado, pelos braços. Tirou em seguida sua camisa, molhou numa poça no
chão e entrou.
Era o Inferno.
Não só havia monstros verdes por todos os lados como podia
reconhecê-los. Eram os estivadores e alguns dos assassinos, com terríveis
feridas, tripas penduradas, marcas de mordidas, braços decepados, pernas com
ossos à mostra. Alguns se arrastavam com os poucos membros que lhes restavam,
outros andavam em sua direção. Nenhum corria, mas todos o queriam. Nenhum
deveria estar vivo.
“Vamos remediar isso.”
Foda-se se estão mortos ou vivos, eu sou maior que
todos eles. São muitos, mas são lentos. Já havia lutado com vinte homens uma
vez e os fez recuar aterrorizados. Não temia ninguém e estava acostumado a ser
temido por todos. Era mais monstro que humano, jamais encontrara alguém sequer
parecido com ele. Se apoderou de um pé-de-cabra e avançou sem hesitar,
espalhando o caos, rachando crânios. Os inimigos vinham em ondas, igualmente
destemidos, mas seus olhos mostravam uma casca vazia, inexpressivos e
arregalados. Os minutos passavam lentamente com os mortos-vivos fazendo um coral
de vozes nefastas, em uníssono. O som lhe enchia a cabeça e lhe enlouquecia.
Percebeu logo que eles só permaneciam mortos se lhes destruísse a cabeça e um
novo vigor tomou conta de seu corpo fatigado. “Calem a boca, porra!” bradava
enquanto descia sua arma improvisada nas cabeças desprotegidas, que se
quebravam facilmente. Agora os zumbis se penduravam em seus membros e a ação
diminuía a marcha, mas não parava. Não podia parar. Não havia opção. Sequer
passou pela sua cabeça parar.
Repentinamente, tudo silenciou, com o último dos
malditos exterminado. Entendeu que o som que emitiam fazia as criaturas
convergirem em sua direção, o que lhe poupava o trabalho de caçá-los. Estava,
pela primeira vez em muito tempo, satisfeito de tanto lutar. Saiu do prédio se
sentindo feliz, se é que tal coisa existe, apenas para ouvir um lamento triste
vindo da direção do seu prisioneiro. Havia se esquecido por completo do capitão
do navio. Ao chegar nele, viu que um dos monstros havia se desgarrado dos demais
e estava mastigando o pênis e os testículos de sua vítima, que atada à árvore
só repetia “ele comeu meu pau”. O zumbi estava partido na linha da cintura e se
abraçava às pernas do Capitão para se alimentar.
Baixou o pé-de-cabra na fronte no alto da cabeça do
morto-vivo, num movimento já familiar. O único que poderia lhe tirar da ilha
agora sangrava copiosamente e não resistiria muito. O bandido então se sentou
por perto e ficou assistindo o homem morrer. Queria ver como acontecia.
Não demorou nada. Após a morte, a reanimação ocorreu
rápido. Este monstro, porém, não era verde. Descobriu que a mordida transformara
este homem, não o gás como acontecera com os outros. Ao menos era assim que
pensava. Levantou para ir embora e a criatura começou a emitir aquele som odioso.
Afastava-se depressa quando mudou de idéia, deu a volta e começou a furar e a
bater no Capitão com o metal em suas mãos. O longo grito continuava, até que
destruiu o tórax, mas nem por isso o mostro parou. Era um experimento. Partiu
então diversos ossos, mas o zumbi continuava com a cabeça bem à frente,
querendo morder. Mesmo depois que o eviscerou e arrancou sua mandíbula. Parecia
que não sabia que não poderia comer ou manter o que engoliu dentro de si.
Certamente não sentia dor.
Sua mente clareou e o fugitivo percebeu que havia sido
contaminado. Em meio a toda loucura, havia sido arranhado e mordido aqui e ali.
Nenhum deles havia lhe tirado pedaço, mas seus braços e pernas estavam cobertos
de feridas e as feridas, ainda que superficiais, imundas com o sangue podre.
Quanto tempo levaria para que se transformasse? Como poderia sair da ilha e procurar
ajuda? Quem poderia lhe ajudar? Se conseguisse sair da ilha, quem em sã
consciência iria chegar perto dele?
Se iria morrer, precisava se vingar. Como os
assassinos não retornaram, alguém iria voltar para descobrir o que aconteceu e
confirmar a morte dos estivadores. Sem testemunhas, sem complicações. Mas
aqueles que sabiam do conteúdo dos tonéis poderia demorar demais e sabia que
não tinha muito tempo. Precisava apressar as coisas. Causou então um pequeno
incêndio na floresta, próximo à praia em direção ao continente. Para evitar a
investigação da Guarda Costeira, os responsáveis por toda aquela droga deveriam
mandar alguém assim que a fumaça subisse muito. Exausto, se recostou e dormiu.
Acordou sentindo um cheiro bom de comida. Percebeu
então que estava há um dia sem comer. Olhou em volta e não viu alimento. Seus
membros estavam pesados e caminhava com dificuldade. Seu tamanho trabalhava
contra ele dessa vez, com a gravidade comprimindo-o. Não se sentia cansado, mas
enrijecendo. Achou normal já que dormira no chão da mata, com uma pedra por
travesseiro. Caminhava em direção à comida, mas não identificava o cheiro.
Parecia carne de caça recém-abatida, ou talvez fosse cordeiro. Só a fome o
incomodava. Seguiu caminhando sempre, sem pensar muito no assunto. Logo, não
pensava em nada...
...só o que restou foi a fome.
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