quarta-feira, 7 de janeiro de 2015





Parte 6 – Objeto irremovível.

O emprego era bom. Lutar era fácil e não precisava estar lá todos os dias. Ganhava mil a cada vez que derrubava um oponente e os derrubava todas as vezes. Só tinha de se manter tranquilo para não tornar a luta num assassinato, mas até que estava fácil, pois fora as lutas estava vivendo em paz, uma paz que há muito tempo não via.

Gostava de sair à noite para caminhar. Andar de ônibus não era mais necessário e suas tripas agradeciam por isso. Não precisava de muito dinheiro para viver e só estava faltando mesmo uma mulher que aguentasse seu furor, mas mesmo isso sabia enfrentar com tranquilidade. Não que não precisasse, mas não era sua prioridade.

Perto da lua cheia sentiu que isso estava mudando, para seu desprazer. Se não procurasse satisfazer todos os seus apetites antes desse período, enquanto a lua estivesse plena no céu ele iria fazer isso da pior maneira possível, o que poderia significar ter de mudar de cidade de novo. Para piorar, vez em quando via o fulano do outro dia, o que aparecia e desaparecia. Descobriu que o homem estivera sempre por ali, mas era tão bom em passar despercebido que podia se ocultar com facilidade, mesmo o cheiro, surpreendendo o lobo ao seu bel prazer, algo inadmissível para alguém que podia ouvir à certa distancia o coração bater no peito dos outros caso se concentrasse nisso.

Numa das vezes, passando pela rua em que o viu pela primeira vez, o monstro vê o homem parado no meio do caminho, esperando por ele. O homem sorri e faz exatamente o mesmo aceno de cabeça brusco da primeira vez. Se acreditasse em outro mundo, outra vida depois dessa, o lobo iria acreditar que aquele que está à sua frente é um fantasma e não um homem. Sentindo o impulso de lutar ensejado pela lua cheia e pela postura claramente desafiadora do homem, o lobo procurou se acalmar e tirar o máximo de informação do oponente antes do embate, mas não tinha muito com o que trabalhar. Seu perseguidor – podia considerá-lo assim? – estava numa posição em que o vento não lhe traria o cheiro, estava tão calmo que não podia ouvir o coração e a expressão tranquila não traía suas emoções, mesmo com a visão que sabia ser aterradora de seus olhos dourados. Emitiu um leve e longo rosnado e assumiu postura de batalha, mas o homem continuava aparentemente relaxado. Olhando atentamente o homem, percebeu que era muito magro, que suas roupas despojadas lhe dariam liberdade de movimento, que havia um grande galo em sua testa e que o homem estava desarmado. O jeito que o homem lhe esperava e a total ausência de medo, mais o sorriso confiante, é que lhe assustava. No quê aquele magrelo estava se garantindo? Era um caçador?

Só uma coisa lhe chamou atenção, seus sapatos tinham dedões separados dos outros dedos.

A fera atacou. A indecisão era pior que a morte, mas não foi feliz. O homem deu um passo pra trás e pro lado direito escapando completamente do bote sem nem mesmo tirar os braços da posição inicial, cruzados atrás do corpo. Desconcertado, o lobo avança correndo mas para na frente do homem e dá um direto, outro e mais outro, enquanto o homem se esquiva com facilidade e sem contra-atacar. Sempre sorrindo, o homem nem mesmo tenta se afastar do atacante, daí a fera tenta abraçá-lo e o homem some por uma fração de segundo, fazendo com que a criatura se abrace. Frustrado e com raiva de si, além do medo do que poderia acontecer se perdesse, vira a cabeça loucamente para todos os lados até perceber que o oponente só poderia estar atrás de si e, ao se voltar o homem está com o rosto a centímetros do seu. No instante seguinte levou dois dedos nos olhos e não viu mais nada. Nem viu a mão chegando. Golpeava cegamente, sabendo que se antes não podia acertá-lo, agora seria impossível. Era o desespero agindo, nem mesmo sabia para onde correr. Segundos se passaram no escuro e sua regeneração lhe permitiu abrir os olhos. O homem estava parado à frente, esperando. Ainda sorria, mas agora estava numa base estranha e frouxa, com uma das mãos na dobra do cotovelo e outra à frente, na altura do pescoço, com ambas as palmas voltadas pra si. Seu coração permanecia baixo demais para ser ouvido, mas mesmo que quisesse, o lobisomem não poderia ouvi-lo, já que sou próprio coração estava ribombando nos ouvidos. O monstro dá um grito abjeto, misto de confusão, medo e fúria, e ataca mais uma vez. Dessa vez pôde perceber algo impossível: o humano se movia depois que seu ataque era iniciado e se movia mais lentamente que ele, como todos os demais, só que de alguma forma conseguia esquivar com um mínimo de esforço e movimento. Quando foi tentar um segundo golpe semelhante ao anterior, o homem já havia aprendido o movimento e lhe deu um soco com as costas da mão esquerda no bíceps direito. A pancada foi tão forte que jogou o braço do monstro pra trás, mas a dor veio especialmente forte porque pegou a força do próprio monstro. Ele segurou a dor por um instante e ficou parado por menos de um segundo, daí o homem lhe acertou o olho direito com a mesma mão que lhe acertou o braço, só com o polegar, como um complemento do primeiro golpe. O olho quase explodiu no processo.

Agora o monstro gritou.

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