Parte 6 – Objeto irremovível.
O emprego era bom. Lutar era fácil e não precisava estar lá
todos os dias. Ganhava mil a cada vez que derrubava um oponente e os derrubava
todas as vezes. Só tinha de se manter tranquilo para não tornar a luta num
assassinato, mas até que estava fácil, pois fora as lutas estava vivendo em
paz, uma paz que há muito tempo não via.
Gostava de sair à noite para caminhar. Andar de ônibus não
era mais necessário e suas tripas agradeciam por isso. Não precisava de muito
dinheiro para viver e só estava faltando mesmo uma mulher que aguentasse seu
furor, mas mesmo isso sabia enfrentar com tranquilidade. Não que não
precisasse, mas não era sua prioridade.
Perto da lua cheia sentiu que isso estava mudando, para seu
desprazer. Se não procurasse satisfazer todos os seus apetites antes desse
período, enquanto a lua estivesse plena no céu ele iria fazer isso da pior
maneira possível, o que poderia significar ter de mudar de cidade de novo. Para
piorar, vez em quando via o fulano do outro dia, o que aparecia e desaparecia.
Descobriu que o homem estivera sempre por ali, mas era tão bom em passar
despercebido que podia se ocultar com facilidade, mesmo o cheiro, surpreendendo
o lobo ao seu bel prazer, algo inadmissível para alguém que podia ouvir à certa
distancia o coração bater no peito dos outros caso se concentrasse nisso.
Numa das vezes, passando pela rua em que o viu pela primeira
vez, o monstro vê o homem parado no meio do caminho, esperando por ele. O homem
sorri e faz exatamente o mesmo aceno de cabeça brusco da primeira vez. Se
acreditasse em outro mundo, outra vida depois dessa, o lobo iria acreditar que
aquele que está à sua frente é um fantasma e não um homem. Sentindo o impulso
de lutar ensejado pela lua cheia e pela postura claramente desafiadora do
homem, o lobo procurou se acalmar e tirar o máximo de informação do oponente
antes do embate, mas não tinha muito com o que trabalhar. Seu perseguidor –
podia considerá-lo assim? – estava numa posição em que o vento não lhe traria o
cheiro, estava tão calmo que não podia ouvir o coração e a expressão tranquila
não traía suas emoções, mesmo com a visão que sabia ser aterradora de seus
olhos dourados. Emitiu um leve e longo rosnado e assumiu postura de batalha,
mas o homem continuava aparentemente relaxado. Olhando atentamente o homem,
percebeu que era muito magro, que suas roupas despojadas lhe dariam liberdade
de movimento, que havia um grande galo em sua testa e que o homem estava
desarmado. O jeito que o homem lhe esperava e a total ausência de medo, mais o
sorriso confiante, é que lhe assustava. No quê aquele magrelo estava se
garantindo? Era um caçador?
Só uma coisa lhe chamou atenção, seus sapatos tinham dedões
separados dos outros dedos.
A fera atacou. A indecisão era pior que a morte, mas não foi
feliz. O homem deu um passo pra trás e pro lado direito escapando completamente
do bote sem nem mesmo tirar os braços da posição inicial, cruzados atrás do
corpo. Desconcertado, o lobo avança correndo mas para na frente do homem e dá
um direto, outro e mais outro, enquanto o homem se esquiva com facilidade e sem
contra-atacar. Sempre sorrindo, o homem nem mesmo tenta se afastar do atacante,
daí a fera tenta abraçá-lo e o homem some por uma fração de segundo, fazendo
com que a criatura se abrace. Frustrado e com raiva de si, além do medo do que
poderia acontecer se perdesse, vira a cabeça loucamente para todos os lados até
perceber que o oponente só poderia estar atrás de si e, ao se voltar o homem está
com o rosto a centímetros do seu. No instante seguinte levou dois dedos nos
olhos e não viu mais nada. Nem viu a mão chegando. Golpeava cegamente, sabendo
que se antes não podia acertá-lo, agora seria impossível. Era o desespero
agindo, nem mesmo sabia para onde correr. Segundos se passaram no escuro e sua
regeneração lhe permitiu abrir os olhos. O homem estava parado à frente,
esperando. Ainda sorria, mas agora estava numa base estranha e frouxa, com uma
das mãos na dobra do cotovelo e outra à frente, na altura do pescoço, com ambas
as palmas voltadas pra si. Seu coração permanecia baixo demais para ser ouvido,
mas mesmo que quisesse, o lobisomem não poderia ouvi-lo, já que sou próprio
coração estava ribombando nos ouvidos. O monstro dá um grito abjeto, misto de
confusão, medo e fúria, e ataca mais uma vez. Dessa vez pôde perceber algo
impossível: o humano se movia depois que seu ataque era iniciado e se movia
mais lentamente que ele, como todos os demais, só que de alguma forma conseguia
esquivar com um mínimo de esforço e movimento. Quando foi tentar um segundo
golpe semelhante ao anterior, o homem já havia aprendido o movimento e lhe deu
um soco com as costas da mão esquerda no bíceps direito. A pancada foi tão
forte que jogou o braço do monstro pra trás, mas a dor veio especialmente forte
porque pegou a força do próprio monstro. Ele segurou a dor por um instante e
ficou parado por menos de um segundo, daí o homem lhe acertou o olho direito
com a mesma mão que lhe acertou o braço, só com o polegar, como um complemento
do primeiro golpe. O olho quase explodiu no processo.
Agora o monstro gritou.
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