Estava participando do NaNoWriMo, como vocês sabem, mas
desisti faz tempo. Simplesmente perdi vontade de escrever e não costumo me
obrigar a fazer nada, exceto obrigações cotidianas. O que eu estava escrevendo,
também não me agradou nada e isso precipitou as coisas.
O caso é que eu acabei com mais de 5.700 palavras escritas à
toa, daí que vou publicar aqui no Sucupiras semanalmente. Além de ficar mais
fácil para quem interessar ler o que escrevi, vai me dar tampo de ir escrevendo
um final para a história. Os primeiros seis capítulos já estão garantidos, daí
temos um mês e meio para ver um caminho para essa história.
Abaixo, o primeiro capítulo de Sangue
de Lobo
Parte 1 – O Monstro
Ele estava num ônibus indo pra casa. Tinha uma consciência
terrível de tudo o que o cercava. Esse era o pior em morar numa cidade:
informações demais. Morar no interior não era uma opção, já tentara isso
algumas vezes, mas enquanto os humanos se acostumam às suas cercanias e não dão
atenção à maior parte das coisas que passam por eles, o monstro simplesmente
não podia ignorar nada, por mais que tentasse. Isso o deixava nervoso e
enjoado, mas precisava andar de ônibus.
Ao menos estava sentado. Ficar de pé, em meio à toda aquela
gente, seria horrível.
Ia ouvindo um metal bem alto para amortecer as sensações, mas
a música o deixava levemente pronto para lutar. Era sensível à musica. Quando o
artista era bom, conseguia passar o sentimento desejado para e ouvinte, e a
criatura que mimetizava um humano, sentado num banca para deficientes e obesos
de um ônibus articulado era especialmente receptivo à informações externas. Por
isso não ouvia música clássica.
Não com frequência, ao menos.
Ele era atlético, mas não muito. Seus músculos eram incrivelmente
duros, o que o tornava muito mais forte do que aparentava. Utilizava roupas que
escondiam a musculatura e o faziam passar por um homem magro, de um metro e
setenta. Quando alguém esbarrava com ele, o que só acontecia em ambientes
superlotados, pensava que estava acertando algum osso de tão duros que eram
seus braços. Os ossos eram como titânio e nunca havia quebrado um osso, mesmo
tendo sido atingido de todas as formas que você possa imaginar e mais vezes do
que ele mesmo poderia contar. Suas unhas cresciam muito rápido, bem como seus
cabelos e barba, mas ao atingirem certo comprimento paravam de crescer. Era
alguma trava genética que dizia algo como “OK, por aqui chega”. Quando alguém o
feria, se recuperava muito rápido e mesmo cicatrizes eram praticamente
imperceptíveis. Apenas os dentes eram um problema, pois ainda era vulnerável à
carie, seus dentes se gastavam normalmente e mesmo já havia perdido dois
molares quando um caçador o atingiu com uma pesada picareta na face esquerda.
De maneira geral, não parecia inumano. Imaginava que esse
fenótipo era para poder andar melhor entre o rebanho humano. Só uma coisa o
denunciava como o lobisomem que era, e essa coisa estava literalmente na cara.
Seus olhos eram amarelos e em nada pareciam com os de uma pessoa qualquer. A
maior parte das pessoas ainda assim não notavam, pois ele andava sempre de
cabeça baixa à noite e de óculos escuros da manhã à tarde.
O homem-lobo ainda chamava atenção. Uma combinação de beleza
rústica, vigor físico, graça nos movimentos, brilho dos cabelos e um feromônio
que secretava no suor o tornava irresistível às mulheres e homens que gostavam
de homens. Aliás, sabia que o órgão de Jacobson era funcional em humanos por
experiência própria e usava esse conhecimento à seu favor há tempos.
Vez em quando um caçador o encontrava e tentava acabar com
sua vida. Tentaram matá-lo de muitas formas diferentes e criativas. Sabiam de
suas habilidades e de seus limites, mas não estavam nunca preparados para a
extensão de sua capacidade de luta. Oportunidades demais o tornaram exímio
combatente e sua força, resistência, velocidade e reflexos superiores lhe davam
uma grande vantagem, mesmo contra grupos bem armados. Ainda assim, sua
determinação era o que o levava além, impedindo-o se simplesmente deitar e
morrer.
Achava sua vida sem propósito e maçante na maior parte do
tempo. Haviam instintos terríveis que não combinavam com a existência entre
humanos sempre ali, sempre presentes. Gostava do cheiro e do gosto de carniça,
por exemplo. Olhando para alguém, podia se ver arrancando grandes pedaços de
carne de seu pescoço à dentadas. Paradoxalmente, seus impulsos sexuais estavam
sobcontrole. Nem ele saberia explicar por que.
De todos os muitos impulsos que precisava controlar, o pior e
mais forte era o de meter porrada em todos os que o incomodavam. O problema era
especialmente sério porque tudo e todos eram irritantes neste ou naquele nível.
No ônibus mesmo, naquele momento mesmo, um fumante deixava o cheiro
insuportável com o seu suor, o homem ao seu lado era tão esquálido que estaria
melhor morto, atrás de si, há três assentos de distância, uma mulher falava
imbecilidades no celular e quase todos no ônibus tinham vidas ridículas,
repetindo as mesmas coisas que detestavam fazer dia a dia. Queria matar a
todos. Poderia matar a todos. Isso o deixaria muito mais feliz. A vibração do
motor do ônibus embrulhava seu estômago e o deixava tonto, mas sua fisiologia
dificilmente o permitiria vomitar. Agora estava ouvindo Imbecil, do Matanza, e
essa música sempre o deixava com vontade de matar, mas não podia desligar o
player do celular, não com toda aquela gente vomitando futilidades numa
torrente inteligível só pra ele. Melhor mudar de música.
Faltavam ainda muitos minutos para descer do ônibus e ele
resolveu descer. Estava ficando louco. “Bem que podiam aparecer agora uns
caçadores para gastar energia”, mas aí se lembrou da última vez. Sangue demais,
corpos esquartejados para esconder, testemunhas foram também mortas e
parcialmente devoradas. Enfim, foi uma merda. Teve de mudar de cidade.
Precisava mudar de cidade constantemente. Isso era uma merda também.
Caminhando célere pela calçada, percebeu que passaria em
frente à um Studio Fitness em que alguns jovens fortes estavam conversando
acaloradamente. Comemoravam o recente título de um deles. Um título de MMA.
Eram todos consideravelmente mais corpulentos que ele e queriam briga. O cheiro
lhe dizia isso, mas havia sinais corporais que o indicavam para quem soubesse
ler. Parou bem antes e atravessou a rua. Podia bater em todos eles com
facilidade, seria divertido até, mas estava com muita raiva e não terminaria
bem. O problema é que viram o magrelo cabeludo fazendo isso.
Começaram gritando ofensas. Chamavam-no de frango e de
cabeludo gay, daí atravessaram a rua. Estava já puto da vida e resolveu esperar
por eles. Parou de frente, os punhos fechados, cabeça baixa. Procurava se
acalmar, contudo. Eu sua mente, já visualizava como se daria o combate. Seria
assustadoramente rápido e doloroso pra eles. Foi cercado pela manada de
rinocerontes e imediatamente o cheiro de testosterona encheu o ar. Percebeu que
alguns transeuntes olhavam e não se importou. Continuavam falando e um deles
pegou no seu cabelo. Estava estático até então, mas nesse momento fez um leve
movimento abaixando mais a cabeça. Sentia nojo. Amanhã teria de se mudar de
novo. Perceberam seu movimento. “Uuuuuu, ele quer brigar” disse um deles. “Vou
guisar ele”, disse outro. Em sua mente, repetia que não precisava matar, mas
estava já sentindo o calor lhe tomando o corpo. Não se transformava, como nos
filmes, mas ficava muito mais forte e rápido quando isso acontecia. Sorte deles
que não era lua cheia.
Socou o que estava à sua frente. Foi como se o retrovisor de
um caminhão o tivesse acertado enquanto esperava sua vez de atravessar a rua,
ainda na calçada, inesperadamente. Sentiu o osso se partir, mas era sempre
assim, e a cabeça do homem açoitou pra trás com violência. Os danos no cérebro
seriam piores. Antes que outros sequer percebessem completamente o acontecido,
voltava o cotovelo do mesmo braço em direção ao peito do que estava atrás sem
precisar olhar. Duas costelas estalaram. O homem começava a voar. Olhou a
todos, que pareciam se mover em câmera lenta, enquanto dava um passo pra
frente, escapando do alcance dos brutos. Parou, girou num pé enquanto o outro
descrevia um belo e mortal arco no ar, explodindo no pescoço de um e dando um
novo ângulo à articulação de um cotovelo na descendente. Um impulso maligno o
fez agarrar os genitais do quinto homem ainda inteiro com a mão direita e o
deixou dar todos os golpes que quis. Para o desespero de sua vítima, os socos
não produziam qualquer efeito, nem mesmo retirava o sorriso da cara do monstro.
O homem tentou retirar a mão que lhe apertava o escroto, mas descobriu ser
impossível. À beira da morte, o homem disse “desculpa” e desmaiou. O coração da
fera ribombava tão forte nos próprios ouvidos que não podia prestar atenção nas
palavras, mas sabia que o coração do homem estava a ponto de desistir, daí
soltou.
Alguém começou a dizer algo favorável a seu respeito, mas
continuava sem entender as palavras. Quando estava nesse estado, só entendia as
emoções, daí ouviu uma voz de mulher, angustiada. Vinha de perto daquele que
teve o pescoço fraturado. De repente a mulher veio lhe bater, ainda que no
íntimo soubesse ser um erro. Sem pensar muito no que fazia, deu um pisão
simples no abdome da jovem, bem onde carregava a criança. Estava no início da
gravidez e ela provavelmente não sabia o porquê dos enjoos ainda. E já não
estava mais.
Saiu correndo.
Estava feliz de ter espancado aquelas pessoas, mas não estava
pensando direito e agora aniquilara um humano não nascido. Se importava, mas
pelos motivos errados, e queria fazer alguma coisa para desviar a mente do
acontecido. Lutar sempre o deixava com tesão. Quando isso acontecia, precisava
foder com força, mas uma mulher comum não poderia suportar o sexo com o
monstro. Trepar com alguém que pode vencer um galgo na corrida sempre machucará
e muito! Nesses casos, o monstro ligava pra uma profissional viciada em
heroína. Depois do coito ficava imprestável por toda uma semana e carregaria
cicatrizes pelo resto da vida, mas ao menos uma vez por mês respondia ao
chamado. Ela era muito bem paga para ser possuída pelo lobisomem e o vício a
obrigava a aproveitar qualquer chance de ter muito dinheiro de uma vez. E havia
ainda a questão do feromônio. Ainda que doesse demais o tempo todo em que
estivesse embaixo dele, ao terminar os impulsos animais irreprimíveis a fariam
querer voltar outra vez. Ao ligar, ele só dizia “venha”. Sua voz inconfundível
era tudo o que ela precisava saber do que se tratava.
Quando ela chegou, havia alguém com ela. Um homem. A voz da
mulher tinha uma nota ansiosa imperceptível para um homem comum, mas não pra
ele. Amaldiçoando a desgraçada por sua cobiça e frustrado por não ter o que
esperava antes de se mudar, a fera abre a porta para lutar mais uma vez.
BLAM
O tiro o pegou de surpresa.
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