Diabo no Couro – Parte 2
Teve um pesadelo. Não era de sonhar, mas quando o fazia
normalmente eram visões ruins. Estava habituado, mas este foi muito diferente
dada a vivacidade da coisa. Atribuiu o fato à cama estranha e ao cansaço da
viagem. Até que gostava de ter pesadelos vez em quando. Um deles relacionado
com a tatuagem era uma boa história para contar. Ou seria, se fosse de
compartilhar o que lhe ia pela cabeça.
Claro que fora um sonho. Apagou no chão depois de ouvir a
palavra do monstro tenebroso – qual era mesmo? – e pela manhã estava na cama.
Ainda tinha uns dias de férias e queria descobrir o que fazer. Um lugar cheio
de gente com modificações corporais tinha de ter bares fantásticos e pessoas
incríveis...
...ou ao menos uma mulher que valha a
pena trazer pro hotel.
Não tinha a menor vontade de se levantar da cama. A luz
entrando pela fresta da janela parecia clara demais. Estava quente, mas
preferia assim porque sua terra natal era quente. Por isso viajara em agosto,
perto do seu aniversário, mas não esperava que o Sol brilhasse tão forte. A luz
batia nos lençóis brancos e o cegava. Pegou o celular para ver as horas e se
surpreendeu: passava de uma da tarde!
Quanto tempo eu dormi?
Pensou em levantar, mas com o simples movimento de sentar uma
indolência terrível o venceu. Mal tinha fome, porque não continuar deitado?
Procurou o controle remoto com as mãos por cima da cama sem se dar ao trabalho
de olhar è sua volta. Não encontrou nada, mas percebeu que estava nu.
Quando foi que eu tirei a roupa?
Imaginava quando é que havia começado a sonhar. Talvez tenha
chegado exausto, tomado banho e deitado. Todo o resto fazia parte do sonho
estranho que teve durante a noite. Ao menos assim pensava, pois sequer lembrava
desse banho.
Uma hora se passou. Precisava vencer a inércia e sair da
cama, comer alguma coisa. O fez muito lentamente e se obrigando a isso. Fechou
bem as cortinas e pediu ao serviço de quarto que lhe trouxessem pão, café com
leite, suco, geleia, queijo, presunto, mamão e iogurte. O criado não quis lhe
atender, dizendo que já estavam com o cardápio do almoço. Geanderson, ainda nu,
lhe disse que estava pagando por tudo e que, uma vez que acabara de acordar,
queria tomar café. Era isso ou que chamasse o Gerente. Tempos depois seu pedido
estava em sua porta, com um discreto pedido de desculpas rabiscado num papel.
Ele se enrolou nos cobertores, abriu a porta e puxou a comida para dentro do
quarto.
Enquanto comia, percebeu que não havia tomado banho. Estava
tudo cada vez mais estranho, mas nada que uma ducha não resolvesse. Terminou
seu repasto e entrou no box. Queria lavar as lembranças do sonho, mas também
queria lembrar a palavra que lhe foi dita. Era algo em outro idioma ou não
entendera direito o que fora dito? Onde foi que já ouvira aquela porra?
Logo que o banho começou sentiu dores no pênis. Parecia que
lhe queimavam com cigarro. Desligou rapidamente a água e olhou bem para ver o
que acontecia. Notou, para seu espanto, que seus genitais estavam cheios de
feridas. Haviam pares de pequenos furos na parte de cima e dois arranhões longitudinais
de cada lado, da base à cabeça. Eram superficiais, sem qualquer inflamação, e
já haviam criado casca, mas ao molhar esta amoleceu e daí a dor. Aumentou o
calor da água e lavou cuidadosamente, com uma esponja e muito sabão, e já pensava
em sair para tomar antibióticos. Mais uma vez, a perspectiva de enfrentar o Sol
lá fora com sua luz incrível lhe parecia demais e desistiu. Ligou para o
serviço de quarto e pediu estojo de primeiros socorros, se enxugou e se vestiu.
Se a água era terrível, como seria passar água oxigenada?
“Devem ter me drogado durante a noite e aí eu fodi um buraco
na parede ou coisa assim”, pensou. Logo chegou o pessoal do hotel. Havia um
médico ou enfermeiro todo de branco com uma maleta, um copeiro e um carregador.
Perguntaram se precisava de cuidados médicos, e Geanderson “não, são só arranhões”.
“Posso ver?” disse o profissional de saúde. “Não”, foi a resposta, juntamente
com a mão estendida para a bolsa de primeiros socorros nas mãos do carregador.
Tinham de ter dragado Geanderson. Não havia possibilidade
dele ter se machucado daquele jeito e não lembrar. O sonho foi uma bad trip. Por
isso não se lembrava de mais nada. De repente um arrepio lhe correu a espinha.
Teriam lhe roubado algum órgão? Correu ao banheiro, se despiu e procurou
cuidadosamente por suturas em qualquer parte de corpo. Não encontrou nada.
Abriu as nádegas com as mãos e olhou seu ânus para saber se fora sodomizado. Nada.
Olhou seus pertences para saber se algo estava faltando e estava tudo lá.
Que porra aconteceu ontem?
Voltou mais calmamente ao espelho. Olhava agora suas
tatuagens. Haviam linhas em forma de asas estilizadas nas costas, o número 77
no lado esquerdo do peito, um ícone no ombro esquerdo com uma tribal da base do
pescoço ao antebraço no mesmo lado. Ainda queria tatuar o braço direito. Olhou mais
cuidadosamente seu diabinho, que começava a escamar. Pegou uma pomada hidratante
e passou lá.
O monstrinho parecia mais alegre
hoje.
Subitamente ficou tudo preto e lembrou do rosto escuro e
sorridente – quase um Gato de Alice – próximo do seu e aí a palavra foi mais
uma vez sussurrada.
...csábító...
Agora a coisa estava gravada à fogo em sua mente. Estava
decidido a sair e descobrir onde foi que ouvira aquela coisa. Escreveu num
papel como entendeu que se pronunciava – tchávitô – e só descansaria depois de
aprender seu significado. Tudo iria fazer sentido e teria paz outra vez. Só uma
coisa ainda o incomodava: as marcas em seu pênis pareciam feitas pelos dentes
de seu demônio pessoal, ainda sem nome.
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